A democracia racial brasileira ainda é um discurso apaziguador que não tem apoio na realidade de 92 milhões de negros e negras que habitam o país. No Brasil, ser negro significa ter menos estudo, trabalhar mais, ser mais pobre e viver menos. É o que atesta a pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a Secretaria de Políticas para Mulheres e Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas.
"O Brasil tem o desejo de não ser racista e por isso esconde o que é. O fato de não enfrentarmos a realidade não permite que sejamos aquilo que queremos ser. A sociedade brasileira precisa se repensar caso queria superar a desigualdade racial", afirma Maria Inês Barbosa, coordenadora-executiva do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas.
Segundo a pesquisa, apesar de representar metade da população do país, uma minoria negra consegue romper com o destino traçado pelo racismo institucional e subir os degraus da escala social para se colocar em pé de igualdade com os brancos.
Maria Aparecida Moura, 41, doutora, coordenadora de pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais e a única professora negra na história da escola, é um desses raros exemplos. Filha de lavadeira, Maria Aparecida faz parte de uma das primeiras famílias que ocuparam um terreno onde hoje é a Vila São José. Depois de ter a casa destruída por uma enchente, a família deixou a favela e construiu um barraco de lata no bairro Petrolândia. Aos 14 anos, ela começou a trabalhar como empregada doméstica.
Insistência. Decidida a continuar estudando, ela condicionou o emprego à escola. "Fui trabalhar numa casa na Cidade Jardim com o compromisso de que continuaria estudando. Chegou o 2º grau e eu queria fazer o científico, mas o que estava escrito pra mim era o curso técnico, que você faz e começa a trabalhar. Acabei fazendo o magistério por uma pressão externa e interna, eu admito", conta Maria Aparecida.
Com o ensino médio concluído, Maria Aparecida trabalhou como secretária, fez transcrição de fitas, trabalhou novamente como doméstica, teve a primeira filha, começou a participar do movimento negro e só em 1989 prestou vestibular. Mesmo tendo que pegar oito ônibus por dia, cuidar da filha de dois anos e administrar os conflitos conjugais gerados pela dedicação ao estudo, ela concluiu a graduação e foi aprovada no mestrado.
Pouco depois fez o concurso para professora e, já como professora titular da UFMG, fez seu doutorado. "Se você parar para pensar, é um cenário tão inóspito que tem tudo para dar errado. Acho que até o fato de eu ter me alimentado na cozinha da patroa da minha mãe me ajudou a chegar até aqui", comenta.
Metamorfose. Se Maria Aparecida rompeu os limites e alcançou um lugar reservado aos brancos, o respeito ainda precisa ser reconquistado todos os dias. "O racismo se metamorfoseia e te acompanha aonde você for. E o racismo acadêmico me parece pior porque ele é o contrário do discurso. Tive um período muito militante, mas parei de tentar mostrar para os brancos o quão racistas eles são. Hoje as armas que tenho são outras. Se tem uma tarefa que desenvolvo com convicção é tirar essas pessoas da multidão, tirar a invisibilidade que recai sobre o negro", afirma.
A doutora em ciência da informação diz que convive no dia-a-dia com a prática do racismo, seja dos colegas acadêmicos - que chegaram a boicotar publicamente sua ascensão profissional e desautorizá-la como coordenadora - seja dos alunos, que sempre testam sua competência nas primeiras aulas.
Para que o Brasil avance no processo de igualdade racial, Maria Aparecida acredita que duas coisas são essenciais: a melhoria da educação e o fortalecimento da auto-estima dos negros. E não apenas no sentido frívolo de se sentir bonito, mas de ser aceito.
"Se afirmar como negro não é só saber sambar. Tem que sambar e falar inglês porque, senão, quando você ocupa um espaço de poder, você não faz nada, fica refém. E a gente não tem o direito de vacilar. Quando um negro intelectual dá certo ele incomoda, fica todo mundo esperando ele cair", diz.
- Portal O Tempo
- Brasil
- Artigo
Um país de corpo negro e alma racista
A desigualdade está presente na escolaridade, renda e expectativa de vida
Clique e participe do nosso canal no WhatsApp
Participe do canal de O TEMPO no WhatsApp e receba as notícias do dia direto no seu celular
O portal O Tempo, utiliza cookies para armazenar ou recolher informações no seu navegador. A informação normalmente não o identifica diretamente, mas pode dar-lhe uma experiência web mais personalizada. Uma vez que respeitamos o seu direito à privacidade, pode optar por não permitir alguns tipos de cookies. Para mais informações, revise nossa Política de Cookies.
Cookies operacionais/técnicos: São usados para tornar a navegação no site possível, são essenciais e possibilitam a oferta de funcionalidades básicas.
Eles ajudam a registrar como as pessoas usam o nosso site, para que possamos melhorá-lo no futuro. Por exemplo, eles nos dizem quais são as páginas mais populares e como as pessoas navegam pelo nosso site. Usamos cookies analíticos próprios e também do Google Analytics para coletar dados agregados sobre o uso do site.
Os cookies comportamentais e de marketing ajudam a entender seus interesses baseados em como você navega em nosso site. Esses cookies podem ser ativados tanto no nosso website quanto nas plataformas dos nossos parceiros de publicidade, como Facebook, Google e LinkedIn.
Olá leitor, o portal O Tempo utiliza cookies para otimizar e aprimorar sua navegação no site. Todos os cookies, exceto os estritamente necessários, necessitam de seu consentimento para serem executados. Para saber mais acesse a nossa Política de Privacidade.