Santa Tereza

Livros que ensinam e sustentam 

Catador monta sebo ao ar livre e ganha dinheiro com as publicações que recolhe nas ruas de BH

Por Débora Costa
Publicado em 16 de abril de 2016 | 03:00
 
 
 
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São 6h, e o catador Sebastião Delfino Bento, o Tião, 58, se apressa para descer do metrô na estação Central e subir as ladeiras do bairro Santa Tereza, na região Leste de Belo Horizonte. O dia havia começado às 5h, quando ele saiu de sua casa, onde mora com a mulher, no Cidade Industrial, em Contagem, para ir trabalhar. Assim que chega ao ponto de serviço, ele busca seu acervo de livros e o coloca enfileirado na grade de uma residência. Pronto. Está aberto o sebo ao ar livre do Tião.

Os cerca de150 livros do acervo de Tião são vendidos à comunidade pelo valor simbólico de R$ 2. As obras foram doadas ou seriam descartadas para o lixo, mas foram “salvas” pelo catador. E tem de tudo: textos poéticos do século XIX, de escritores nacionais, como Machado de Assis e José de Alencar, até obras religiosas, biográficas, científicas e infantis.

Há três meses, Tião faz de todas as segundas, quartas e sextas-feiras seus dias de coleta de lixo no bairro para o seu sebo. Foi assim que, nos últimos dois anos, ele guardou o material em uma caixa e percebeu que muitos se interessavam pelo acervo. Então, o catador decidiu vendê-lo para tirar um extra na sua renda, que não passa de R$ 600 por mês com a reciclagem. “Antes, eu rasgava e usava como papel para a reciclagem. Aí, uma amiga do bairro me disse para vendê-los, para me ajudar a comprar um café, um lanche”, contou.

Em um dia bom de vendas, Tião consegue tirar até R$ 30 com os livros. O valor é dividido com o seu enteado, Paulo Henrique Raimundo da Silva, 21, a quem o homem chama de filho. Os dois recolhem os materiais recicláveis e os vendem para um depósito particular no bairro Horto, também na região Leste. Enquanto tomam conta da “livraria a céu aberto”, eles ajeitam o material que vai para a reciclagem.

Aprendizado. Com bom humor, Tião atende todos que perguntam pelos livros. Hoje, ele reconhece a importância das diversas obras que já encontrou, pois elas o ajudaram a aprender a ler. Pouco letrado, o catador deixou a escola quando tinha 15 anos, e, desde então, as revistas e os textos que encontrou no lixo nesses quase 40 anos como catador foram seus “professores”.

Aliás, a vida dele daria uma boa história de livro. Natural de Sobrália, no Vale do Aço, Tião chegou a Belo Horizonte com 13 anos. Aos 20, começou a trabalhar como catador. A vida não foi fácil, e o envolvimento com o crime – não revelado – o levou a pegar uma pena de 17 anos de prisão. A liberdade condicional veio após sete anos, e, desde então, Tião foca sua vida na reciclagem.

“Muitas coisas boas aconteceram. Casei em 2010, e minha família está bem. Dou muitos conselhos para eles e deixo claro que é difícil uma vida na cadeia. Sou feliz do jeito que vivo e agradeço a Deus todos os dias pela oportunidade de trabalho”, completa.

Renda
Mudança
. Antes do sebo, Sebastião Bento precisava vender 9 kg de papel para conseguir atingir o valor de R$ 2 o mesmo de um livro. Para conseguir R$ 30 era preciso vender 120 kg de papel.

Homem é acolhido pela comunidade

A presença de Sebastião Bento no bairro Santa Tereza é sempre notada pelos amigos da região. Volta e meia você ouve: “Bom dia, Zé”; ou um “Olá, Tião”, como ele é conhecido. Muitos, inclusive, o ajudam com doações não só de livros, mas também de alimentos e roupas.

Aliás, o comércio das obras só é possível com a ajuda de Carmem Lacerda, 52, que é quem guarda o material para o catador. “Ele tem liberdade para entrar na minha casa e pegar e guardar os livros. E o que seria de nós sem esses livros. Tião é um amigo querido”, disse. 

Lei exige licença da prefeitura

Apesar de aprovada pela comunidade do Santa Tereza, a venda de livros pelo catador Sebastião Bento é considerada uma prática ilegal pela Prefeitura de Belo Horizonte. Responsável pela fiscalização no local, a Regional Leste informou que o Código de Posturas da cidade considera irregular a comercialização de produtos na rua sem a devida licença do Executivo.

A norma se refere às bancas de jornais e revistas e à comercialização de flores naturais. Todas deverão ser licenciadas por meio de licitação.

Segundo a prefeitura, nesses casos, os fiscais podem autuar o comerciante e apreender as mercadorias. O produto pode ser recuperado mediante o pagamento do preço público de armazenagem e apresentação da nota fiscal ou comprovante de posse do mesmo. Serão cobrados pelos itens levados o valor de R$ 91,36 por unidade ou R$ 1,75 por quilo de volume apreendido.

A prefeitura disse ainda que, caso o autuado seja reincidente, a multa pode ser dobrada ou triplicada. No caso de Bento, para se regularizar, ele precisará aguardar a abertura de licitação de novos locais para a instalação de bancas. “Sei que podem vir aqui e levar tudo. Mas, se vierem, estão com a intenção de prejudicar uma pessoa que está tentando ganhar o pão. Eles deveriam se preocupar com os bandidos”, disse. 

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