Entrave

Plano engavetado após gasto sem ações práticas será atualizado por R$ 3 milhões

Estudo que propõe resolução de problemas ligados à mobilidade e ao desenvolvimento econômico da Grande BH passa por revisão, sem garantias de ser aprovado; expectativa é que o estudo seja concluído em março de 2025

Por Raíssa Oliveira
Publicado em 29 de abril de 2024 | 06:00
 
 
 
normal

Todos os dias a farmacêutica Leandra Almeida, de 40 anos, encara uma jornada para chegar ao trabalho. Moradora da região Nordeste de Belo Horizonte, ela gasta entre 1h20 e 3h30 no trajeto de casa ao trabalho, em Caeté, cidade a 40 quilômetros da capital, na região metropolitana. Leandra é uma entre milhares de cidadãos metropolitanos que enfrentam um longo percurso para ter acesso a emprego, educação, saúde e lazer. Além do estresse constante, o desgaste pelo deslocamento se soma ao gasto diário de mais de R$ 30 em passagem. “Tem dia que o tempo de deslocamento dobra e até triplica. Eu acredito que com uma tarifa única ficaria mais fácil”, conta. O que Leandra não sabe é que essa solução já foi mapeada há mais de uma década, em um plano com custo de mais de R$ 6 milhões aos cofres estaduais. Só que o estudo foi engavetado e agora passará por uma revisão com novo investimento previsto de R$ 3,2 milhões.  

O Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) foi elaborado em 2009 e aprovado em 2011. A promessa era a resolução de problemas ligados à mobilidade, ao desenvolvimento econômico, além da criação de polos produtivos com geração de empregos. Ele foi desenvolvido através de processo participativo, que uniu cidadãos metropolitanos e entidades técnicas responsáveis, com a chancela do Conselho Deliberativo de Desenvolvimento Metropolitano (CDDM). Em um primeiro momento, o estudo custou R$ 3,09 milhões. Em 2013, ele foi complementado com o macrozoneamento (que é a divisão da cidade em áreas com determinados perfis construtivos) ao custo de R$ 2,99 milhões.  

Na época, o projeto foi estruturado em quatro eixos, que uniam acessibilidade, seguridade, urbanidade e sustentabilidade. Ao todo, foram definidas 28 políticas propostas, organizadas em programas, que foram subdivididos em projetos. Na prática, entre as propostas estavam a unificação das tarifas do transporte coletivo intermunicipal, tão esperada por Leandra, e construção das linhas 2 e 3 do Metrô, novas unidades de moradias populares e o planejamento de macrodrenagem intermunicipal, para evitar inundações na Grande BH e retirar pessoas de áreas de risco geológico. 

Nada disso foi levado adiante. Anos de investimentos e estudos foram arquivados em 2017. Agora, renomeado como Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDUI-RMBH) - ele  passa por revisão sem, contudo, ter tornado realidade mudanças importantes previstas, como a ampliação das linhas do metrô, e sem garantias de ser aprovado. O novo investimento previsto é de 3,2 milhões e a expectativa é que o estudo seja concluído em março de 2025. O novo plano terá cinco eixos temáticos: o ordenamento territorial, habitação, mobilidade, desenvolvimento socioeconômico e meio ambiente da região metropolitana, que é composta por 34 municípios. 

“Desde 2015 os planos diretores são obrigação legal, com a sanção da lei federal do Estatuto da Metrópole. Na Grande BH temos uma tradição de muitos anos. É uma metrópole que foi protagonista em planejar a região metropolitana considerando que os problemas não são municipalizados. O PDDI era uma tentativa de dar continuidade ao processo e fazê-lo de forma participativa,”, explica Rogério Palhares de Araújo, arquiteto, urbanista e pesquisador do Observatório das Metrópoles.

Diretor-geral da Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de BH, autarquia estadual que é responsável pelo agora chamado Plano  de Desenvolvimento Urbano Integrado da RMBH ou PDUI, Marcus Vinícius Mota explica que, apesar do novo gasto, a atualização é necessária para adequação à realidade devido às mudanças e ao crescimento da região metropolitana, sobretudo em mobilidade, nos últimos anos. “O plano de 2009 não considerava, por exemplo, a estrutura do BRT (MOVE), com dois corredores nas avenidas Cristiano Machado e Antônio Carlos. Hoje temos como uma das principais formas de locomoção o transporte por aplicativo, ele não existia em 2009. Então é uma realidade diferente que demanda essa revisão”, justifica. 

Mota explica que o PDUI vai mapear as ações necessárias para melhor ocupação da região metropolitana, como obras viárias e projetos integrativos por mais qualidade de vida do cidadão metropolitano. Tudo isso estruturando os entes responsáveis por cada iniciativa e a fonte de investimento. “A nossa intenção é que, uma vez que se transforme em uma lei, a legislação crie obrigações e defina os papeis e responsabilidades de cada ente federado, entre os 34 municípios e o governo do Estado”, garante.

Segundo o pesquisador do Observatório de Metrópoles, Rogério Palhares, os problemas a serem resolvidos não param no trânsito. Ele cita ainda a habitação e os problemas de macrodrenagem para evitar inundações, como prioridades. Ele ressalta ainda que ações integradas de Defesa Civil já eram previstas no antigo PDDI e nunca foram efetivadas. “O PDDI já trazia uma proposta de gestão do risco de inundação e desabamento de forma integrada, na qual teríamos uma soma dos esforços das defesas civis municipais para atuar de forma integrada. Talvez isso precise ser reforçado porque as inundações atingem não apenas um município. Além disso, um programa habitacional robusto, em que teria diretrizes para construções com percentual de ocupação social, de casas populares. Precisamos exigir que a cidade cresça de forma equilibrada, convergindo em um mesmo lugar a população de baixa e alta renda”, avalia.  

Falta de mobilidade tira oportunidades e onera moradores da Grande BH

Enquanto o plano não sai do papel, moradores de alguns municípios deixam de ser escolhidos para vagas de emprego em função da dificuldade de locomoção. Atuando no ramo de aviamentos há 37 anos, no Barro Preto, região Central da capital, Fausto Izac conta que os custos com transporte de funcionários que moram na região metropolitana chega a ser 68% maior do que o gasto com trabalhadores residentes da capital. Algo que onera os custos da empresa e, às vezes, serve de critério de escolha de contratação.  

“Tenho funcionários em Contagem e Ribeirão das Neves, por exemplo. Na prática, gasto R$ 1.050 com transporte a cada quatro funcionários que moram na capital. Com o mesmo número de funcionários, mas que residem na região metropolitana, o valor sobe para R$ 1.765. Estamos tendo um apagão de mão de obra, faltam pessoas qualificadas, mas, havendo candidatos de ficha equivalente, quem usa o transporte coletivo da capital acaba sendo escolhido”, lamenta.

O comerciante cobra um sistema de transporte adequado e, além disso, um adensamento maior do centro de BH. “O trabalhador mais perto que eu tenho é do bairro Lagoinha. Não tem pessoas residindo próximo ao meu comércio. O adensamento é o mais urgente. A esperança maior que temos é a revitalização da região central, com moradias sociais e uma tarifa unificada, que eu entendo que oferecerá benefício, não apenas para o trabalhador, mas para toda a região metropolitana”, opina.

Vice-presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de BH (CDL/BH), Marcos Inneco, admite que a distância é um complicador para a contratação de mão de obra, uma vez que encarece o custo da operação. “Com um funcionário da RMBH que trabalha na Savassi, o empregador tem que pagar pra ele um transporte metropolitano no cartão Ótimo e um transporte municipal no BHBus. Ou seja, dois custos. A tarifa única seria um facilitador para o funcionário e, se baratear, vai ajudar ao empregador”, explica. Ele ressalta ainda que a falta de um plano metropolitano efetivo acaba prejudicando todos os 34 municípios. “Cada cidade tem um entendimento das suas necessidades e prioridades, então o contexto geral acaba sendo prejudicado”, lamenta. 

Um cenário sentido na pele pela população. A estudante de comunicação social, Ketrey Aquino, de 22 anos, enfrenta uma verdadeira jornada diária para conseguir trabalhar, estudar e morar com a família. A jovem mora em Betim, estuda em Belo Horizonte e trabalha em Contagem. Todos os dias ela passa cerca de três horas dentro dos ônibus que fazem parte do sistema metropolitano. “Tem vez que gasto mais. A gente sai de casa já contando que vai agarrar no trânsito. São dois ônibus até a faculdade, um até o serviço e outro até a minha casa”, conta. 

Rotina que gera um desgaste físico e emocional, segundo Ketrey. “Gera um estresse muito grande. Os ônibus estão cheios e você tem que ir em pé, quando chego em casa estou exausta por uma coisa que não teria que estar. Nos finais de semana, dependendo do meu nível de cansaço, eu cancelo meus compromissos porque só o barulho de ônibus me dá agonia”, desabafa. Além disso, os altos valores acabam por “pesar” no bolso da jovem, que já chegou a gastar em média R$ 400 por mês com passagens. Situação insustentável para a população de baixa renda. “Eu que faço parte do Cadúnico e sou bolsista, por exemplo, vejo que não é uma tarifa pensada para todas as classes sociais”, cobra. 

Segundo o diretor da Agência RMBH, Marcus Vinícius Mota, a redução dos problemas relacionados à mobilidade deve ser prioridade no PDUI. “A ideia é identificar quais ações podem ser efetivadas para melhoria da mobilidade. Uma que é premente é a integração dos sistemas, como são contratos distintos, temos que adequar, mas acredito que devemos avançar. Regiões metropolitanas que têm sucesso na mobilidade contam com sistema integrado, como Curitiba e Vitória”, pontua. 

O especialista em segurança do trânsito, Rodrigo Mendes, cita a necessidade de também diversificar os modais públicos de transporte. “Os usuários do transporte público são reféns de somente um modal de transporte. Ele já está saturado, tanto em quantidade e qualidade de prestação, quanto em capacidade de locomoção. Deve ser investido na criação do metrô subterrâneo, o trem de superfície, o VLT, que pode ser suspenso, e o BRT integrado a tudo isso, incluindo a implantação de tarifa única aos usuários”, pontua. Mendes aponta ainda a criação de “centros espalhados” como solução para diminuir a necessidade de locomoção entre os municípios. “É importante que cada município possa ofertar ao seu munícipe, condições de trabalhar, estudar, morar e criar suas famílias dentro de sua própria cidade. Causando assim, um menor deslocamento entre elas”, opina. 

Na última quinta-feira (26 de abril) o governo de Minas e as prefeituras de Belo Horizonte e Contagem assinaram um protocolo de intenções de governança do Sistema de Transportes Metropolitano, de forma integrada. A ideia é criar um canal de diálogo para garantir a continuidade das tratativas, independentemente das mudanças nas administrações municipais e estaduais. Ainda não há detalhamento de ações práticas e nem participação dos demais municípios no primeiro momento.

Entrave político atrasa desenvolvimento 

A explicação para o engavetamento do plano vai além do que simplesmente a falta de viabilidade ou problema técnico. Para o arquiteto e urbanista Rogério Palhares de Araujo, a resposta pode estar em um entrave político.“Faltou mais costura política para ser aprovado. Naquela época faltou alguém que fizesse uma costura política para poder fazer valer um bom projeto de lei. Faltaram deputados que abraçassem essa questão, o projeto de lei não passou nem nas comissões, não tinha padrinho. O macrozoneamento ficou pronto em 2016, mas o projeto acabou arquivado em 2017. Ao longo desse tempo muita coisa mudou do ponto de vista político. Os prefeitos mudaram. Mudou o arranjo político nos municípios, assembleia e governo”, pontua. 

O arquiteto e urbanista, Sérgio Myssior, concorda que, para o avanço do novo planejamento, é preciso garantir um diálogo entre governantes. O especialista alerta que há necessidade de primeiro acabar com uma “lacuna” no processo institucional de governança interfederativa.  “Todos os municípios estão subordinados a uma dinâmica metropolitana. Diversas pessoas que vêm para BH residem no entorno, assim como quem vai para Contagem, onde há grande oferta de trabalho, também estão em outros municípios. Abastecimento de água e descarte de resíduos sólidos é outro exemplo. Mas a nossa lei estadual, baseada no PDDI, não foi votada e sim arquivada. Então temos uma lacuna na governança para tratar questões que surgem no cotidiano, conflitos de conurbação, de macrodrenagem e déficit de moradias, por exemplo, que afetam o cidadão metropolitano”, avalia. 

Para Myssior, a instituição de uma lei e o diálogo entre municípios e governo, mediado pela Agência RMBH, seria a solução para essa lacuna. “Se esse plano não avançar em relação a inter-governança e não sensibilizar, ele corre o risco de não sair do papel. Para sair ele precisa ter seus instrumentos de gestão regulamentados e mobilizar as esferas de governo, mostrar que é um plano de estado e não de governo. É um tema distante da população ainda, mas precisamos perceber que somos cidadãos metropolitanos e me interessam os assuntos metropolitanos”, alerta.

Nesta segunda-feira (29 de abril), a Agência RMBH inicia o segundo Ciclo Participativo de audiências públicas para atualização do PDUI. A etapa tem como objetivos informar e debater o conteúdo do processo de atualização do plano, além de recolher contribuições da população para o desenvolvimento das etapas de macrozoneamento - quando o município é dividido em grandes áreas, com diferentes vocações e funções. A etapa vai até o dia 4 de junho. 

Segundo a Agência RMBH, a expectativa é que a conclusão do PDUI ocorra em março de 2025. Em seguida, será elaborada a minuta do projeto de lei, que será analisado e votado pela Assembleia Legislativa. “Temos criado espaços de discussão com a Assembleia para que, através da representação no Conselho Deliberativo de Desenvolvimento Metropolitano, que envolve governo de Minas, prefeituras de BH, Contagem e Betim, além de duas cadeiras para os 31 municípios que formam a região metropolitana, da ALMG e da sociedade participem de forma ativa e acompanhe a elaboração do plano. A ideia é mostrar que o trabalho é fruto de uma discussão participativa de diversas parcelas da sociedade para, ao final, a decisão partir de consensos. Isso vai mitigar algumas discussões no ato da votação da lei”, finaliza.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!