Filha do diretor Jorge Bodanzky, Laís Bodanzky frequentou sets de cinema e teve contato com os grandes nomes do meio desde muito jovem. Decidir seguir a mesma carreira, portanto, não foi algo muito difícil. Mas quando chegou a hora de dirigir seu primeiro longa, ela se deu conta de algo estranho. “Eu não tinha referência do que era ser uma mulher diretora. Até como se comportar, se vestir, com que tom falar. A gente precisa de referência, e eu nunca tinha visto uma”, confessa.
Não se trata de uma falha na formação de Laís. Muito menos de um problema pontual. No início do mês, um estudo ganhou as manchetes nos EUA ao evidenciar a baixíssima diversidade no cinema hollywoodiano em 2014. Segundo a pesquisa, menos de 2% dos filmes produzidos no país no ano passado foram dirigidos por mulheres, e apenas 30% dos papéis com fala nesses longas eram femininos – entre outros números ainda piores com relação a negros, latinos e LGBTs.
FOTO: Acir Galvão Piragibe/Divulgação |
Num mercado ainda dominado por homens, elas lutam para deixar de ser minoria na frente e atrás das câmeras |
O TEMPO fez um levantamento similar com os números do cinema brasileiro, e eles são melhores, mas não muito. Segundo o site da Ancine, dos 114 longas nacionais lançados em 2014, apenas 11 foram dirigidos por mulheres – menos de 10%. Em 2013, de um total de 129, foram 21 (16,2%). O melhor resultado aparece em 2012: de 83 longas, 20 foram comandados por mulheres, ou 24%.
Sim, os números são melhores que nos EUA. Mas quando se considera que, segundo o IBGE, 51% da população brasileira é feminina, que 45% dos advogados credenciados na OAB-MG e 40% dos médicos ativos no CRM-MG (carreiras muito mais tradicionalistas) são mulheres, é difícil entender por que o cinema ainda cheira a meia e cueca como o quarto de um adolescente de 15 anos.
“Eu não acho que seja ruim. O que eu vejo é um salto”, contrapõe o pesquisador Luiz Felipe Miranda. Um dos responsáveis pela “Enciclopédia do Cinema Brasileiro”, ele conta que, até 1990, apenas 30 mulheres haviam dirigido um longa no país. De 1991 a 2013, esse número saltou para 250. “Na década de 70, 14 novas diretoras surgiram, mas nenhuma delas fez carreira. Fizeram um ou dois filmes. Hoje, você tem a Tizuka Yamazaki, que dirigiu mais de dez”, compara.
Mesmo defendendo que o cinema não é uma arte machista, Miranda reconhece um certo desvio. “A Gilda de Abreu, primeira brasileira a dirigir dois longas, contava que, quando vestia calças, a equipe a respeitava mais no set”, ele ri. Quando foi finalizar “Bicho de Sete Cabeças” na Itália, país tão ou mais machista que o Brasil, Laís Bodanzky sentiu isso na pele. “O Luiz (Bolognesi, roteirista do longa e marido da diretora) foi comigo, e eles só se dirigiam a ele como autor do filme”, lembra.
Não há como ignorar, porém, que as coisas mudaram um pouco desde quando Gilda dirigiu “O Ébrio”, em 1946. Bodanzky percebeu isso recentemente, quando dirigiu dois episódios para uma série da HBO. “Uma atriz novata, que estava fazendo figuração, chegou pra mim e disse 'curioso, nesse set quem manda são as mulheres'. E era verdade, não só eu, mas a assistente de direção, a fotógrafa, a diretora de arte, éramos todas mulheres”, recorda.
Outra acostumada a frequentar sets desde pequena, Julia Rezende confirma essa evolução. Filha do diretor Sérgio Rezende e da produtora Mariza Leão, a jovem de 29 anos acabou de dirigir “Meu Passado me Condena 2”, segunda maior bilheteria do cinema nacional em 2015. “Se você entra num set hoje, vê muitas mulheres nas funções técnicas. Minha produtora é minha mãe, a montadora é mulher. Até na equipe de câmera, que sempre foi muito dominada por homens, vejo cada vez mais mulher fotografando. Acho que mudou muito em comparação ao set do meu pai”, avalia.
Futuro. Esse cenário tem uma origem muito clara: a grande presença feminina nos faculdades de cinema. Rafael Ciccarini, coordenador do curso da UNA, na capital, conta que, além do corpo docente ser majoritariamente feminino, dos dez trabalhos de conclusão que está orientando, seis são dirigidos por mulheres.
O que é difícil explicar é por que muitas delas, ao se formarem, acabam derivando para outras áreas, como o roteiro, a produção ou direção de arte. “A figura do diretor é muito masculina, assim como a mentalidade e a história do cinema é muito masculina, heterossexual, escrita por e sobre homens. Quando falamos dos pioneiros, todo mundo cita os Lumière, mas ninguém lembra da Alice Guy, tão pioneira quanto”, opina Ciccarini. Desconstruir essa mentalidade, para ele, é comprar uma briga simbólica a que nem toda mulher está disposta. “A batalha é mais árdua para uma mulher se afirmar como diretora do que para um homem. Mas acho que essa briga simbólica está atrasando o processo, não impedindo, porque é uma questão de tempo”, considera.
Ele ressalta, no entanto, que apesar dessa ideia imortalizada pelos franceses de que apenas o diretor é autor do filme, nem sempre é ele que importa. “Tem muitas roteiristas e produtoras que fazem a diferença”, reflete. Adilson Marcelino, editor e criador do site “Mulheres do Cinema Brasileiro”, concorda. “O cinema nacional, refletindo a sociedade brasileira, sempre foi comandado por homens. Mas as mulheres, como a Vânia Catani e a Sara Silveira estão tomando isso na marra”, argumenta Marcelino.
Exemplos assim são fundamentais. Com 21 anos e prestes a se formar na UNA no fim do ano, Bruna Martins teve receio de entrar na faculdade de cinema exatamente por se tratar de um meio masculino. Ela conta que isso mudou quando, logo no início do curso, teve a chance de trabalhar na Teia, com a diretora Tonia Amaya, e depois na Anavilhana Filmes, das produtoras Luana Melgaço, Clarissa Campolina e Marília Rocha.
“Foi um encorajamento enorme ver essas quatro mulheres tão fortes e ativas fazendo filmes que eu adoro. Apesar dos poucos nomes ouvidos em sala de aula, foi um motivo para continuar firme no curso e lutar junto com elas para ter essa voz feminina no cinema”, explica Bruna, que está dirigindo uma adaptação em stop-motion do conto “O Gato Preto”, de Edgar Allan Poe, para seu projeto de graduação.
Anos depois de não ter encontrado uma referência, Bodanzky reconhece a melhora. “Hoje mesmo respondi a mensagem de uma amiga, uma cineasta mais nova que eu, percebi que ela me tinha como referência e pensei 'que legal' que, de certa forma, também posso estimular novas diretoras que estão querendo chegar”, revela.