Em suas muitas versões e cortes ao longo dos anos, “Blade Runner: O Caçador de Androides” sempre foi um filme sobre o limite entre realidade e sonho, sobre o que define o que é verdade e o que é fantasia – o que é humano e o que é sintético. Mais do que isso, é uma obra em que se pergunta quem cria essas definições, com que objetivos e com base em quê. E, a partir daí, explora o que acontece quando se começa a perceber as rachaduras nessas convenções.
Trinta e cinco anos depois, sua aguardada continuação, “Blade Runner 2049”, que estreia nesta quinta-feira (5), continua levantando as mesmas questões – ampliadas agora pelos temas e pelos avanços tecnológicos da contemporaneidade. Curiosamente, o protagonista da sequência é um novo modelo de replicante que “corrige os defeitos e as falhas” dos anteriores. E é exatamente isso que o estúdio tenta fazer com o filme do diretor Denis Villeneuve (“A Chegada”): uma versão mais simples e limpa do original, com trama e execução mais claras, que não alienem o público como o longa de 1982. O resultado funciona, mantendo os temas e a essência do clássico, ainda que perca um pouco de sua originalidade e sua ousadia.
Esse protagonista é o caçador de androides K (Ryan Gosling). E a trama, passada no ano do título, começa quando ele descobre fortes evidências de que uma replicante teria dado à luz um filho décadas atrás. Uma informação bombástica, capaz de “pôr abaixo o muro que separa as espécies” – e que a chefe dele, Joshi (Robin Wright), ordena que K investigue e elimine qualquer vestígio de sua existência.
E, assim como no original, essa investigação externa é também, e principalmente, uma investigação interna. Porque K – diferentemente do Rick Deckard vivido por Harrison Ford – é um replicante que sabe de sua condição e está em paz com isso. Mas, à medida que desvenda seu caso, ele passa a questionar todas as suas certezas sobre as distinções entre as espécies, o que torna alguém humano e no que consiste ter uma alma.
O objetivo de “2049” é tornar essas distinções tão borradas e difusas para o público quanto elas vão se tornando para o protagonista. E é porque a jornada externa espelha essa tempestade interna que os incríveis designs de produção, de Dennis Gassner, e fotografia, de Roger Deakins (ambos de “Skyfall”), são tão fundamentais.
Gassner constrói um futuro tão sujo e decadente quanto o do filme original, com ruas e ambientes externos nada atraentes. Com isso, os espaços sintéticos e as fugas digitais – materializados na namorada virtual do protagonista, Joi (Ana de Armas), uma espécie de Siri futurista – se tornam “realidades” bem mais aconchegantes e agradáveis. O que, em tempos em que as pessoas usam redes sociais e vidas virtuais como bolhas para se protegerem dos terrores do mundo real, não soa como algo muito distante.
E a fotografia de Deakins, abusando do uso de fumaça e do forte contraste entre claro e escuro, torna ainda mais difícil para o espectador distinguir o que é real ou virtual. Isso fica muito na sede da corporação Wallace, responsável pelos novos replicantes, toda construída em tons orgânicos de água e madeira para mascarar a artificialidade produzida ali – e Deakins explora isso ao máximo, alternando o tempo todo entre luz e sombra.
Porque “2049” é, essencialmente, um longa sobre essas cortinas de fumaça. Sobre as mentiras e as histórias que nós criamos para esconder a verdade ou lidar com uma realidade cruel e adversa. E o que interessa ao filme é o que acontece quando essas histórias, de meramente necessárias, passam a soar quase mais reais que a própria verdade – quais as consequências, trágicas ou poéticas, disso.
O roteiro de Hampton Fancher (do original) e Michael Green (“Logan”) nem sempre está à altura disso, com alguns furos e pontos malresolvidos (especialmente envolvendo a personagem de Robin Wright). Mas o longa tenta compensar com a boa direção de Villeneuve, associando a suntuosidade visual de Ridley Scott a seu talento para ambientações tensas e dramáticas; o bom elenco, com destaque para Gosling, carregando nas costas a intensidade do arco de K com sutileza e emoção, e a aparição de Harrison Ford no ato final para amarrar os dois capítulos; e a primorosa fotografia de Deakins, criando um quadro emoldurável atrás do outro – nenhum mais belo que a imagem-síntese do filme, de uma árvore aparentemente estéril, mas que é, sim, capaz de florescer.
A trilha de Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch homenageia o trabalho antológico do Vangelis no original, sem ter o mesmo caráter icônico. Esta talvez seja a melhor tradução de “2049”: não é tão revolucionário quanto “Blade Runner”, mas faz jus a seu legado.