Na continuação da entrevista exclusiva do cineasta mineiro Carlos Alberto Prates Correia ao Magazine, o montesclarense fala sobre o que busca ao fazer cinema, revela por onde andou e o que fez nos últimos 15 anos e, em palavras sucintas, conta qual a influência de outros diretores em sua obra.
A sua obra como diretor, ainda que curta, é extremamente significativa e reconhecida como talvez o último sopro de grandes idéias em Minas Gerais, ao menos até o momento. Seus filmes eram essencialmente "mineiros" (desde a temática até a forma como iam sendo desenvolvidos), e ainda assim se mantinham universais. A mineiridade era um objetivo seu na hora de escolher ou desenvolver um projeto? Hoje é possível existir um cinema "mineiro" universal?
(Obra) Curta como, se, apesar das barreiras, ninguém fez mais filmes "mineiros" do que eu? Mesmo em termos nacionais, nossos cineastas de maior envergadura (Tonacci, Joaquim Pedro, Haroldo Marinho Barbosa) não ultrapassaram a minha marca. Sou maioral na extensão, mas jamais me impute a responsabilidade por grandes idéias! Deixe esta pessoa no seu canto.
A decantada mineiridade nunca foi um objetivo consciente na escolha de meus projetos: eles nasceram do sonho com um bispo ("O Milagre de Lourdes"), da necessidade de me inserir num ambiente temático composto por mais dois episódios ("Os Marginais"), da necessidade irrefreável de citar Kenji Mizoguchi cruzando racismo com ascensão social ("Crioulo Doido"), de transgredir o modelo da ditadura das reconstituições históricas e adaptações literárias ("Perdida"), de cantar com a minha voz cinematográfica as músicas que aprendi em Montes Claros ("Cabaret Mineiro"), de difundir a estupenda maquinaria verbal do Guimarães Rosa ("Noites do Sertão"), de contar para os outros tudo que Antônio Rodrigues me contava jogando pôquer ("Minas Texas") e de promover o inventário de bens com certo valor deixados por alguns cinéfilos e cineastas em sua passagem por Minas ("Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais").
Essa mineiridade do seu cinema estava inclusive nas escolhas de matéria- prima, como adaptar Rosa e Carlos Drummond de Andrade. O senhor também se pauta pela literatura mineira ou esses autores se encaixam na idéia do mineiro universal?
Que maluquice é essa? Quando é que adaptei Carlos Drummond? Apenas pedi ao Tavinho Moura (parceiro de Prates em todos os seus filmes), em "Cabaret Mineiro", para musicar o poema em que Drummond fala do cabaré, provavelmente por informação do jornalista Newton Prates, do escritor Cyro dos Anjos ou porque deu umas voltinhas por lá.
No esplendor da construção da ferrovia, Montes Claros já teve 10% da população composta de prostitutas. Na madrugada de um réveillon, em torno de 1957, presenciei cena de (Emile) Zola: já em franca decadência, estirada na lama com seu casaco de pele, uma remanescente daquele período áureo emborcava uma garrafa de cachaça diante do garoto de Summer Jack, na rua do cassino, fumando charuto. Mas como noto que o senhor prefere a sociologia, leia a professora Mariza Veloso a propósito de "Minas Texas": a visão do diretor é a mesma da pós-modernidade, que tende a fragmentar o mundo, embora não se ajuste rigorosamente no lugar-comum.
"Gostei da opção de Prates quando transforma Minas, um Estado de forte tradição cultural, num pano de fundo para falar da decadência cultural. Minas Texas, a princípio, parece que vai apresentar uma visão cruel da cultura, mas depois parte para uma visão doce e nostálgica dessa mesma cultura. E é exatamente na nostalgia que se encontra uma forte característica da mineiridade." E teoriza: "A mineiridade é quase ontologicamente nostálgica". Para ela, contudo, "Minas Texas" vai muito além dessa mera caracterização: "mostra também a utopia de uma síntese não realizada. É a própria visão da modernidade."
Uma pergunta quase abstrata, a ser respondida por instinto: o que o senhor buscava (ou busca) com o seu cinema?
Me divertir, é claro, como protagonista dessa tresloucada aventura. Afastar a monotonia, mais recentemente provocada pela aposentadoria prematura. No início, entretanto, imaginava estar praticando um ato revolucionário, estimulando o espectador a sair da sala de exibição pronto para a luta. Verdade. Até tomar consciência de que apenas participava de um bando de marotos.
Ainda falando de mineiridade, o senhor fez jus à origem e sempre se manteve à margem da badalação - poucas entrevistas, pouco contato com público ou crítica. Houve um motivo para isso?
Um filme deve ser composto de cenas que se encadeiam durante 90, cem minutos. O acréscimo efetuado nas entrevistas sempre me pareceu uma muleta, não gosto de seu uso - quebra o encanto. Mas especialistas na palavra (são raros) às vezes conseguem tornar o filme mais interessante. Dependem, no entanto, de quem os entrevista, do bom funcionamento da co-autoria.
(André) Bazin, com Orson Welles num hotel parisiense, tornam "Cidadão Kane" mais brilhante. Na literatura, Günter Lorenz e Guimarães Rosa trazem à tona todos os surubins do São Francisco para ouvir o que eles estão falando... Quer saber? Só optei pela profissão após ter a certeza de que um ótimo lugar para cineasta era bem atrás da câmera. Foi esse o motivo.
O senhor estava sumido desde o final dos anos 80. Poderia dizer por onde esteve e o que fez neste tempo? Chegou a pensar em produzir e dirigir antes de fazer "Castelar..."?
Retour-en-arrière: em 1990, eu tinha sofrido um golpe duplo do Collor. Sem a Embrafilme, não consegui distribuir o recém-concluído "Minas Texas". Com o bloqueio das aplicações financeiras, fiquei também sem acesso a uma pequena herança que acabara de receber e que garantia meu sustento. Quando surgiu a possibilidade de liberar cruzados novos com menor deságio, mudei-me para Montes Claros e construí uma casa.
Lá ficaria um tempo trabalhando no roteiro novo, depois a venderia, quem sabe até com algum lucro para investir no filme. Subitamente, contudo, enxames de marabuntas começaram a invadir a casa, me obrigando a vendê- la pela metade do preço. Movido pelo desejo de me tornar um personagem roseano, comprei gado e chapéu de couro. Perdi o gado e, com o chapéu, voltei para o Rio, onde me procurou o Paulinho Ribeiro, querendo produzir um filme sobre a vida do Brizola. O filme do Paulinho seria dirigido por mim, e o roteiro eu deveria escrever com Darcy Ribeiro, tio dele.
Relutei intimamente em aceitar o convite, mas topei. Liguei para o Darcy, que eu não conhecia, uma assessora atendeu, perguntou quem desejava falar. Fiquei mudo. Cantos de guerra indígenas, inicialmente distantes, tornaram-se rapidamente ensurdecedores em meus ouvidos. Desliguei num átimo. Meu avô paterno, agora mesmo no século XX, foi morto e comido pelos índios, só deixaram os ossos. Preferi não correr novos riscos e desisti da parceria. Depois veio o câncer, que descobri urinando sangue na frente do lindíssimo mar azul que contorna a Fortaleza de Santa Cruz, durante a escolha dos cenários para o primeiro tratamento de "Sertanejo do meu Coração", um projeto novíssimo.
A operação foi mole, apesar das 13 horas sobre a mesa. Por ironia do destino, porém, peguei o mal do Zequiel, personagem de "Noites do Sertão", e não durmo faz cinco anos. Apesar da seqüela, escrevi um segundo tratamento, ganhei um concurso de roteiros e outro de desenvolvimento de projetos, mas não consegui romper a barreira dos editais de produção. Mesmo com um título mais vigoroso, "A Vida É Morte ou Dinheiro", conforme já informei. Depois vieram "Castelar..." e as restaurações. Meu objetivo atual - claro! - está intimamente relacionado com uma boa noite de sono.
O senhor está remontando alguns de seus filmes? Por quê?
Remontando não é bem, embora tenha aproveitado para fazer alguns cortes. O mais importante foi reeditar o som de todos em DVD, com recursos próprios. Menos de "Noites do Sertão", pois eles se esgotaram antes. No processo, ouvi diálogos, ruídos e instrumentos musicais que tinham se despedido na mixagem e desaparecido no ótico.
Cortei planos deteriorados, tornei letreiros legíveis, dei um acabamento aos filmes que eles nunca tiveram por falta de grana. Pois no mesmo dia em que concluí os trabalhos, a funcionária da Programadora Brasil, do MinC, me oferece a subida honra de lançar o "Cabaret Mineiro" em DVD... com a condição de usar uma telecinagem a partir do original. Respondi, evidentemente, que naquele instante eu resolvera destruir os negativos.
De que tipo de cinema o senhor gosta?
O cinema que gosto deve ter poltronas confortáveis, ar-condicionado perfeito, som e imagem satisfatórios, ser perto de minha casa e exibir nas telas mulheres atraentes, de preferência desnudas, como forma de desagravo às atrizes do cinema pornô, inacreditavelmente incensado por Luis Buñuel no fim da vida.
Apesar disso, deve também levar ao público em cópia nova, na matinê de domingo, às 10h30 da manhã, sua obra-prima "A Adolescente" ("The Young One") e nas semanas seguintes "Jornada Tétrica" ("Winds Across the Everglades"), de Nicholas Ray, "Contos da Lua Vaga" ("Ugetsu Monogatari"), de Kenji Mizoguchi, e diversos monumentos quase desconhecidos que é raro ver programados mesmo pelas cinematecas do país.
Poderíamos falar em algum tipo de influência ou referência de outros cineastas na sua obra?
Não. Ou melhor, de todos.