A formação da identidade brasileira passa, essencialmente, pela confluência entre os povos europeus (majoritariamente portugueses), indígenas e africanos. Mas, por mais que a miscigenação seja uma marca nacional, o estudo das culturas indígenas e, principalmente, africanas ainda é defasado nas escolas. “É grave pensar em até que ponto os conteúdos passados na escola contemplam a diversidade da sociedade. Do mesmo modo que a cultura africana é rechaçada, a indígena também é”, avalia o bibliotecário Vagner Amaro, proprietário da Editora Malê, especializada na produção literária afro-brasileira.
A fala de Amaro diz respeito à repercussão de um comunicado do Sesi de Volta Redonda (SP), redigido em março, que informava aos pais sobre a substituição do livro “Omo-Oba: Histórias de Princesas” (Mazza Edições, 2009), da escritora Kiusam de Oliveira, por outro título. Na nota, a instituição alega que recebeu “um questionamento dos pais em relação ao conteúdo do livro paradidático”. Depois de uma manifestação contrária promovida pela mãe de um dos alunos, porém, o Sesi voltou atrás na decisão em remover o livro da bibliografia escolar e pediu desculpas.
“Omo-oba: Histórias de Princesas” reconta mitos africanos, como a história de Oiá, Oxum e Iemanjá, por meio de seis princesas. Em postagem em seu perfil no Facebook, Kiusam afirmou que “o livro apresenta seis histórias de rainhas, na figura de princesas, com o objetivo de fortalecer a personalidade de meninas, independente de raça/cor, etnia e condições socioeconômicas”.
A postagem continua, destacando que “tais rainhas são nossas ancestrais, uma vez que há comprovações científicas de que África é o berço da humanidade. A forma com que eu as apresento neste livro é sem nenhuma conotação religiosa, mergulhadas que estão na história e nos aspectos da cultura afro-brasileira, através de uma narrativa com personagens negras cheias de afeto e de empoderamento, o que é uma raridade em bibliotecas brasileiras”, fala.
Na opinião da empresária Maria Mazzarello, à frente da Mazza Edições – editora responsável pela publicação de “Omo-oba: Histórias de Princesas” – não se “pode colocar em um mesmo pacote literatura e religião”. “Fundamentalistas religiosos carregam muito a mão ao interferirem em questões como a educação”, argumenta.
Ensino defendido por lei. As decisões sobre o ensino da cultura africana, entretanto, não ficam a cargo das instituições de ensino: esse tipo de conteúdo tornou-se obrigatório na grade curricular de escolas públicas e privadas brasileiras graças à Lei 10.639, instituída em 2003 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O texto ainda estabelece a permanência da comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar.
Por mais que a lei exista há mais de dez anos, a implantação dela ainda é deficitária, segundo avalia Maria. Ela diz que apenas 30% das escolas mineiras aplicam-na corretamente. “A lei estabelece estudos de questões afro, mas dos mais de 20 Estados brasileiros, apenas dez seguem-na como está escrito no texto. Dos mais de 800 municípios mineiros, apenas 30% seguem-na corretamente. Até mesmo em Belo Horizonte essa temática aparece apenas no dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra)”, destaca.
Segundo Amaro, a lei ainda não é cumprida como deveria porque encontra muita resistência na escola e dos próprios pais. “Se pensarmos na representação que a mídia e até as artes fizeram da cultura afro-brasileira, é possível entender essa resistência. A cultura negra esteve, muitas vezes, representada relacionada à feitiçaria e à demonização. Isso foi transmitido como uma verdade. Ainda serão necessárias muitas atitudes como a da mãe que divulgou o boicote da escola e de professores e pais que difundem a história e cultura afro-brasileira, para que a maioria das pessoas entenda como a cultura afro-brasileira constitui nossa vida, nossas relações e o nosso modo de ser”, avalia.
FOTO: Mazza Edições/divulgação |