São Paulo. Vinte anos antes de publicar “Lolita” (1955), seu mais célebre livro, Vladimir Nabokov (1899-1977) começou a escrever na Alemanha o último de seus romances em russo, “O Dom” (“The Gift”), o qual só finalizaria logo ao se mudar para a França, então já como um dos principais escritores da emigração após a Revolução Bolchevique.
Denso e alentado, o romance aborda a vida dos intelectuais russos exilados em Berlim no período entreguerras, com muitas incursões na vida literária do tempo, na história político-cultural da Rússia e nas complexas relações entre literatura e política.
Como se não bastasse, o escritor ainda enxerta na narrativa vários poemas, análises literárias, relatos biográficos e apontamentos científicos sobre lepidópteros, criando um intrincado jogo de espelhos entre realidade, ficção e metaficção.
No centro desse xadrez está Fyodor, um jovem emigrado em plena formação como escritor, que percorre com um olhar crítico a história recente de seu país de origem e, em meio aos seus percalços no meio literário dos expatriados russos, conhece Zina, que se torna seu grande amor. No entanto, como observa Nabokov no prefácio, não é Zina a heroína do romance, e sim a literatura russa.
É esta que atravessa todo o livro por meio das leituras detalhadas que Fyodor faz de seus escritores de referência, em especial Púchkin e Gogol, que ocupam partes generosas da narrativa. Numa delas, Púchkin aparece como o grande mestre com quem o protagonista, em sua busca de aperfeiçoamento na escrita, aprende as artes do ofício.
Para isso, ele “respira” e incorpora Púchkin, investigando apaixonadamente a obra e a vida desse autor que, segundo o narrador, é capaz de expandir a capacidade pulmonar de quem o lê.
Desafio. Pode-se dizer que Nabokov, aí e em outros capítulos da obra (traduzida por José Rubens Siqueira), dá uma verdadeira aula não apenas sobre teoria da recepção e as complexas relações que os escritores podem manter com seus precursores como também sobre as minúcias da análise poética.
Um dos muitos desafios para quem enfrenta a espessura desse romance é ter que lidar com o jogo entre a terceira e a primeira pessoa, visto que a voz e os textos do protagonista também se encaixam na narrativa, assim como os de outros personagens ou escritores.
Isso se dá, por exemplo, quando Fyodor busca reconstituir a vida de seu pai, um entomólogo desaparecido durante uma viagem longínqua para pesquisar borboletas.
Já o capítulo 4, o que mais controvérsias provocou no ambiente intelectual dos emigrados russos, inclui, na íntegra, a jocosa biografia que o jovem fez do socialista Nikolai Chernishevski, ídolo literário dos bolcheviques.
Assim, atento aos mínimos detalhes do que é narrado e explorando a fundo os estados internos de seus personagens, Vladimir Nabokov não deixa de contar também, nesse que é um de seus livros mais notáveis, um pouco de sua própria vida.
O quê. “O Dom”
Autor. Vladimir Nabokov.
Editora. Alfaguara (384 págs., R$ 64,90)