A família que protagoniza “Ao Cair da Noite” mora em uma casa no meio da floresta, isolada da civilização e de alguma epidemia que parece ter dizimado grande parte da população. As circunstâncias dessa doença e o que exatamente ela é nunca são explicados – apenas que mata em cerca de um dia e parece ser altamente contagiosa. Não gera zumbis, nem vampiros – o que significa que não há monstros na obra de terror do diretor Trey Edward Shults, que estreia nesta quinta-feira (22).
Porque o monstro que interessa ao filme é o próprio ser humano. O grande foco do longa é a possibilidade de trevas e luz, bondade e maldade, vida e morte, que existe dentro de nós – e os efeitos do medo, da paranoia e do instinto de sobrevivência sobre esse equilíbrio dinâmico em que se sustentam os pilares da civilização.
O filme acompanha a família formada por Paul (Joel Edgerton), sua esposa, Sarah (Carmen Ejogo), e o filho, Travis (Kelvin Harrison Jr.). Após a morte do pai de Sarah, eles vivem um luto silencioso, interrompido pela chegada de Will (Christopher Abbott). Em busca de alimento e água, ele é eventualmente convidado a se mudar para a casa dos anfitriões com sua esposa, Kim (Riley Keough), e o filho, o pequeno Andrew (Griffin Robert Faulkner).
“Ao Cair da Noite” se torna, então, o estudo das relações – atrações, repulsas e ressentimentos – que vão se formando entre esses personagens. Essencialmente um exercício de observação do comportamento humano sob condições incomuns, o filme é um caldeirão cozinhando uma fórmula prestes a explodir a qualquer momento, com Shults – cujo longa de estreia, “Krisha”, foi um sucesso de crítica no circuito indie dos EUA em 2015 – especialmente interessado no triângulo formado pelos três homens da casa.
O cineasta mantém seu ponto de vista mais próximo de Travis. Um adolescente que parece nunca ter interagido muito com pessoas fora da família, ele tem no casal recém chegado – especialmente Kim – uma vazão para seu enorme desejo de contato físico e a latente curiosidade sexual, típica da idade.
Mas o principal conflito do longa se estabelece entre Paul e Will. Um produto de seu meio e das circunstâncias, o patriarca vivido por Edgerton é um poço de paranoia, incapaz de confiar totalmente em qualquer elemento externo – que representa, potencialmente, uma ameaça à sua família. Isso o coloca em choque direto com Will, que vê ali um porto seguro para Kim e Andrew, mas sabe estarem sob constante vigilância – e podem, a qualquer deslize, passar de convidados a prisioneiros.
Esse xadrez psicológico torna o filme quase um teatro gótico, alicerçado no bom elenco e na direção firme de Shults. A fotografia escura de Drew Daniels trabalha com pouquíssimos pontos de luz, representando a luta entre bem e mal dentro dos personagens, e a boa trilha de Brian McOmber é uma das grandes responsáveis pela tensão no longa.
E esse, na verdade, é o grande desafio que “Ao Cair da Noite” representa para o público: trata-se de um filme que trabalha bem mais com antecipação do que com o horror propriamente dito. Seu caráter de observação e sua recusa em explicar demais – que fazem da história uma alegoria aberta às mais diversas interpretações do público – deixam a obra mais próxima de um drama independente do que de um terror tradicional.
Quem for ao cinema buscando sustos fáceis vai se decepcionar. Agora, quem tiver interesse na escuridão adormecida dentro de todos nós, prestes a ser despertada por qualquer deslize civilizatório, vai ter muito o que conversar depois da sessão.
Mais estreias
Semana de muitas estreias: do Festival Varilux, permanecem em cartaz os franceses “Na Vertical” e “Frantz”. O cinema nacional oferece o premiado drama gaúcho “Mulher do Pai”, o adolescente “Meus 15 Anos” e os documentários “Divinas Divas”, da atriz Leandra Leal, e “Nunca me Sonharam”. E dos EUA, Emma Watson e Tom Hanks estrelam o thriller “O Círculo”.