É hora de colocar o pé na estrada. Foi o que Lô Borges, 65, decidiu depois de ouvir o músico Pablo Castro tocar todas as músicas de seu primeiro álbum solo, lançado em 1972, cujo título reproduzia apenas o nome do intérprete. No entanto, o álbum ficou conhecido como o “disco do tênis”, graças à emblemática foto da capa.
O convite para tocá-lo ao vivo já tinha sido feito há cerca de dez anos. Seria uma das atrações da Virada Cultural de São Paulo. Lô declinou. “Não poderia ficar três meses ensaiando para uma única apresentação. O ‘disco do tênis’ tem uma peculiaridade em minha obra porque não se misturou ao restante de meu repertório. Ele é meticuloso, cheio de detalhes. Constituir uma banda para executá-lo é trabalho de arqueologia”, explica.
Pela primeira vez, Lô resolveu apresentar ao público as faixas que compõem o álbum. Após três apresentações com ingressos esgotados em São Paulo, entre os dias 13 e 15 deste mês, o músico traz o espetáculo nesta sexta (31), às 21h, no Sesc Palladium. “Tinha 20 anos na época em que gravei o ‘disco do tênis’, e me senti tão sufocado pela gravadora que resolvi sumir da vida artística e me refugiar. Eu queria era fazer as coisas que as pessoas de minha geração faziam, ir pra Arembepe (praia no interior da Bahia) e virar hippie. Resolvi botar meu par de tênis na capa para simbolizar esse ‘tchau’ pro mundo que dei”, revela. Ao “dar no pé”, Lô acabou nunca tocando essas músicas frente a plateias.
Composto de 15 faixas, todas autorais – a maioria, inclusive, assinada apenas por Lô – o “Disco do Tênis” não soma mais do que meia hora de duração. Essa característica levou o compositor a assimilar outras canções ao repertório. Mas não quaisquer canções. “Esse espetáculo poderia se chamar ‘O Ano de 72 de Lô Borges’. Me toquei que havia gravado dois álbuns num ano só e que poderia apresentá-los juntos. Assim, primeiro tocamos o ‘Disco do Tênis’ na íntegra e depois minha contribuição, ou seja, as músicas que compus para o ‘Clube da Esquina’. Fica bacana porque aproxima o público, que além de ouvir músicas minhas bem ‘lado B’, no final recorda meus maiores sucessos”, sublinha.
Plural. Influenciado por Beatles, Neil Young, Yes, Emerson Lake and Palmer, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque e Milton Nascimento, aos quais Lô se refere como “orixás”, o “disco do tênis” traz faixas com quatro minutos de duração e outras com um minuto, algumas com versos concisos como haikais (forma de poema japonês) cantadas em apenas 30 segundos. Esse caráter peculiar e experimental derivou-se, segundo Lô, “das condições em que o álbum foi feito. Quando a gravadora me ofereceu um trabalho solo, em razão do grande sucesso do ‘Clube da Esquina’, eu não estava preparado, não tinha música suficiente. Tinha que fazer a melodia de manhã, à tarde meu irmão (Márcio Borges) colocava letra e à noite gravava com a banda”, justifica. É também a este ambiente que Lô atribui “a diversidade do disco. Todo dia eu tinha que fazer música, e cada hora tinha uma ideia diferente. Por isso ele é tão experimental, tem baião, rock, balada, canção, xote, tudo influenciado por meus maiores ídolos”, garante.
Clube. A famosa foto com os dois tênis foi feita pelo pernambucano Cafi, o mesmo que também registrou a imagem dos dois garotos da capa do “Clube da Esquina”, o outro álbum gravado por Lô em 1972. “Foi uma ideia do Milton (Nascimento), que queria me apresentar para o Brasil como cantor e compositor. A gravadora achou que ele tinha enlouquecido de querer gravar um álbum duplo, coisa que não existia na época, e ainda por cima com um ilustre desconhecido de 20 anos, sendo que ele já era um artista consagrado”, recorda.
O “Clube da Esquina”, hoje considerado um dos mais importantes da música brasileira de todos os tempos, citado em diversas listas, só aconteceu porque, de acordo com Lô, “Milton falou que ia oferecer para outra gravadora”. Foi essa “batida de pé” que fez com que os “produtores me engolissem para não perder o Bituca”, avalia Lô.
Música
“Disco do tênis” volta em vinil e pode virar documentário
FOTO: Flávio Charchar/ Divulgação |
Músicos. Com banda formada por jovens, Lô Borges recria álbum conhecido como disco do tênis |
Está previsto para o mês de abril o relançamento em vinil do “Disco do Tênis”, de Lô Borges, pela Polysom. A ideia é que ele traga uma“reprodução fiel da primeira edição, com todo o projeto gráfico, incluindo uma foto colorida no interior do encarte do Lô lendo um jornal e letras manuscritas pelo próprio Márcio Borges”, assegura Marcelo Pianetti, produtor do músico.
Além disso, há também planos para transformar a atual turnê em um documentário, “com depoimentos dos que participaram do primeiro álbum, como Tavinho Moura, Beto Guedes, Toninho Horta e Danilo Caymmi, e uma regravação em estúdio com a banda nova”, completa. O conjunto que toca essa iniciativa recente conta com Pablo Castro (direção musical e guitarra), Guilherme de Marco (guitarra), Marcos Danilo (guitarra e percussão), Alê Fonseca (teclados), Paulim Sartori (baixo, bandolim e percussão), e D’Artganan Oliveira (bateria), além, é claro, do principal personagem: Lô Borges.
Contexto.A intenção do projeto audiovisual também é mostrar os contextos histórico e cultural em que o álbum, hoje considerado cult, foi concebido. “Era um tempo muito maluco, de uma ditadura militar barra pesada que reprimia as pessoas. Nós éramos todos cabeludos e perseguidos por isso. Nossa única possibilidade de viagem era interior. Nos mirávamos em nossos ídolos: Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison”, sustenta Lô. Mesmo passado tanto tempo, o músico assegura que o enfoque de contracultura tem muito a dizer e instiga pessoas de todas as gerações, inclusive a atual. “Pude perceber que o contingente de pessoas jovens na plateia é muito grande, o que significa que essas informações musicais passam de pai para filho, e poder constatar essa renovação é maravilhoso”, orgulha-se.
Esse sentimento ganha ainda mais ressonância para o intérprete quando ele observa o presente. Para ele, “as pessoas têm sido massacradas diariamente por uma música chata, plastificada, sem inspiração. Meus contemporâneos colocavam todo o coração na música para criar algo com muita verdade”, conceitua. Lô, que empreendeu parceria e saiu em turnê com o vocalista Samuel Rosa a partir de 2015, conta que um de seus maiores prazeres é ver o filho do vocalista do Skank, “que tem 18 anos, tocando todas minhas músicas, com uma banda de garotos da idade dele e que poderiam ser meus netos”, diz.
Frescor. A precocidade, aliás, foi uma das características que marcaram a trajetória de Lô. Apesar dos anos, ele espera “manter o frescor de quando ainda era um adolescente” nas próximas apresentações. E garante que “se diverte muito mais no palco agora do que antes”. “Estou mais tranquilo, mais relaxado, curtindo cada momento sem pressa de nada”, informa. O que fica claro quando ele invoca histórias da época do “Disco do Tênis” com um largo sorriso no rosto. “Pablo Castro me disse que talvez nenhum compositor tivesse feito tantas músicas em tão pouco tempo, com 20 anos, e outro amigo retrucou que talvez o Bob Dylan tenha”, diverte-se.
Olhando o passado para renovar o presente e projetar o futuro, Lô não tem nenhuma dúvida de que “a música brasileira vai ‘muito bem, obrigado’, é só procurar fora da mídia” diz.
Depoimento
Agenda
O quê. Show do “Disco do Tênis”, com Lô Borges
Quando. Sexta-feira (31), às 21h
Onde. Grande Teatro do Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro)
Quanto. R$ 10 (meia) a R$ 40