Diz-se que a comédia é a realidade mais dez por cento. No caso de “Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência”, exibido na Mostra de São Paulo, ela é a realidade mais cinco por cento. Ou três. Ou simplesmente a realidade, esperando para ser descoberta em seu absurdo diário. O filme vencedor do Leão de Ouro no último festival de Veneza – e que completa a “trilogia sobre viver” do cineasta sueco Roy Andersson após “Canções do Segundo Andar”, de 2000, e “Vocês, os Vivos”, de 2007 – é um tratado que extrai seu humor da premissa surreal apresentada no título. Se pararmos para pensar a respeito, a vida não faz sentido nenhum. São Paulo.
Não é por acaso que o longa começa com duas pessoas observando dioramas naquelas redomas de vidro típicas de museus de história natural. Essa é exatamente a abordagem de Andersson. “Um Pombo...” é formado de vários esquetes filmados em planos únicos, com a câmera imóvel, como se o diretor botasse seus personagens em uma gaiola e ficasse esperando até que eles comecem a agir como seres humanos, mostrando ao público o absurdo de viver. Perpassando as várias situações, estão Sam (Nils Westblom) e Jonathan (Holger Andersson), dois vendedores de “produtos de entretenimento” que amarram e elaboram a temática do longa.
Não há nenhuma história muito elaborada, e mesmo as situações são bastante simples. Andersson extrai seu humor de elementos sutis, como o enquadramento que faz os personagens parecerem pequenos diante da grandeza do mundo, ou aprisionados nas convenções de sua existência. Ou ainda de pequenas frases – a melancolia com que Holger Andersson diz “nós queremos ajudar as pessoas a se divertirem” é capaz de matar qualquer um de tristeza.
É em contrastes assim, associados à repetição que acentuam sua arbitrariedade, que o longa alicerça seu “Zorra Total Existencial”. Com sua mistura 80% Jacques Tati e 20% Monty Python, Andersson não perdoa nenhuma das convenções que permitem a vida em sociedade. Do anacronismo da monarquia sueca à arbitrariedade dos dias da semana, nada escapa ao seu olhar mordaz – mas, como um personagem diz em certo ponto, “se não obedecermos a eles, o caos vai reinar!”, e esse é o paradoxo de existir.
Até a forma como a arte, especialmente a mais intelectualizada, se aproveita disso para construir espetáculos, e a fascinação do público pelo show das bizarrices humanas, é alvo da produção no seu momento mais surreal e metalinguístico. As únicas cenas de “Um Pombo...” que não são puramente cômicas envolvem demonstrações de afeto. Uma mãe com seu bebê no parque, um casal na janela pós-coito ou na praia se acariciando parecem sugerir que, para Andersson, num mundo sem sentido e cruelmente aleatório, o amor é a única coisa que não é absurdamente hilária.
Com seu distanciamento por vezes frio e seu rigor técnico que pode se tornar cansativo para alguns, “Um Pombo...” traz um humor sutil que talvez não seja para todo mundo. Mas os niilistas que não têm medo de pousar num galho para refletir sobre a existência vão rir, conscientes da impossibilidade de fugir das incoerências do “ser humano”.
O repórter viajou a convite da Mostra São Paulo