RIO DE JANEIRO. Até que ponto a geração libertária dos baby boomers dos anos 60 pode ser acusada de produzir consequências paralisantes aos que vieram depois? Esta relação de proximidade e de atrito entre a liberdade, de um lado, e a ausência de algum controle ou domínio sobre a vida, do outro, é um assunto de especial interesse para o inglês Mike Bartlett, cujos textos já foram vistos no país em “Cock” e “Contrações”. Agora, a mesma companhia responsável por “Contrações”, o Grupo 3 – formado por Débora Falabella e Yara Novaes, além do produtor e iluminador Gabriel Fontes –, está em cartaz com “Love, Love, Love”, no Rio.
Nela, o autor investiga como uma geração condiciona ou modela o comportamento da seguinte, e, a partir daí, de que modo se dá a reação de uma geração mais nova contra o mundo herdado pela mais velha. Bartlett constrói o embate entre integrantes de uma mesma família numa narrativa que trafega por três tempos: os anos 60, os 90 e os atuais anos 2010.
Na trama, dividida em três atos, o autor observa de que modo parte da geração dos anos 60 – hippies e libertários na juventude – abdicou de suas ideologias na passagem para a vida adulta, e as consequências dessa mudança: após a acumulação de riqueza e a constituição de suas famílias burguesas, eles têm de lidar com as frustrações e as dificuldades que seus filhos enfrentam para estruturar e sustentar suas vidas.
Transmissão de TV. Na peça, tudo começa em 1967, na noite em que os Beatles encantaram o mundo com a promessa “All You Need Is Love”, na primeira transmissão de TV realizada ao vivo, via satélite. É nesse ponto histórico que os universitários Sandra e Henry se encontram e, pouco tempo depois, Sandra se apaixona por Kenneth, irmão de Henry, e juntos eles têm dois filhos.
Já nos anos 1990, Sandra e Kenneth têm de lidar com filhos adolescentes, e é nesse ponto que o individualismo e a negligência de ambos se encontram, ou melhor, se chocam, e o casamento de classe média começa a ruir. Já nos idos de 2011, é a vez de os filhos cobrarem certas responsabilidades dos pais. E é numa reunião de família que o drama de gerações ganha sua máxima voltagem, quando um dos filhos do casal, Rose, 37 anos, arremessa sobre a geração “paz e amor” grandes doses de ressentimento e decepção: “Você não alterou o mundo, você o comprou”.
“A peça investiga qual foi o legado que a geração dos anos 60 deixou para os jovens dos anos 90”, diz Débora. “É um acerto de contas entre essas gerações, mas sem julgamento. O Bartlett fala de um casal que viveu sua paixão e sua juventude num momento em que as pessoas acreditavam que o mundo poderia ser muito livre e, ao mesmo tempo, por meio dos filhos, revela o contrário dessa esperança. Os filhos dessa geração que sonhava com um mundo libertário se sentem aprisionados, sem perspectivas. É uma geração que vive até tarde na casa dos pais, que se formou, mas não consegue emprego, constituir família... E os pais, que liberaram seus filhos de certas responsabilidades, agora encaram as dificuldades deles.
Com direção de Eric Lenate, Débora e Yara contracenam com Ary França, Rafael Primot e Mateus Monteiro. Juntos, além do embate geracional, eles refletem ainda sobre como cada geração modela e altera suas ideologias e comportamentos ao longo do curso histórico, dependendo do contexto político e social de cada época. “Ele mostra isso por meio desses pais, ex-hippies na juventude, que acabaram se tornando conservadores, em busca de estabilidade financeira”, observa Débora.
Em entrevista divulgada pelo teatro Roundabout, de Nova York, à época da estreia de “Love, Love, Love” por lá, no ano passado, Bartlett disse que evitou a culpabilização de uma geração ou de outra. “Não há nada mais entendiante do que uma peça que defenda um lado só”, afirmou.