Hollywood acabou de ter sua pior temporada de blockbusters em mais de 20 anos. A arrecadação de US$ 4,1 bilhões em ingressos representa uma queda de 15% em relação a 2013, é o menor valor desde 2006 – e, ajustada a inflação e considerado apenas o número de ingressos vendidos, é o pior resultado desde 1992.
No meio desse cenário desolador, apenas uma certeza reina soberana, com razões de sobra para sorrir. E seu nome é Marvel. Com “Guardiões da Galáxia” e “Capitão América 2: O Soldado Invernal”, a editora/estúdio produziu as duas maiores bilheterias do ano nos EUA. Dos outros oito títulos no top 10, “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” e “O Espetacular Homem Aranha 2” não são do estúdio, mas pertencem à grife. E não só isso: com “Guardiões”, a Marvel provou que consegue transformar um grupo de heróis que nem a maioria de leitores dos quadrinhos conhecia em um fenômeno de mais sucesso que o “Homem de Aço” do ano passado. E se afirmou como a principal marca de entretenimento da cultura pop contemporânea.
“O sucesso do 'Guardiões' é exatamente devido à fórmula Marvel. O público já vai sabendo o que esperar: ação com um pouco de humor e, no final, dá tudo certo”, atesta Maurício Muniz, crítico de cinema e editor da revista “Mundo Nerd”. Editor de HQs dos selos Gal e Peirópolis, ele acredita, porém, que o segredo do sucesso recente da editora no cinema foi mudar a mentalidade vigente de adaptações de quadrinhos, criando um universo coeso habitado por todos os seus heróis. “Ninguém na Fox pensou em um filme com os X-Men, o Quarteto Fantástico e o Demolidor. Nem a Sony”, compara.
Muniz admite que lançar um longa do “Homem de Ferro” com o Nick Fury aparecendo no final falando da iniciativa Vingadores, depois mostrando o martelo do Thor, era um risco que se mostrou uma estratégia comercial muito inteligente. “Eles criaram personagens que funcionam sozinhos, mas que dentro de um espectro maior arrebentaram a boca do balão. Para a minha geração, era como se fizessem um filme com o Indiana Jones, o Rambo e o Exterminador do Futuro”, explica sobre o sucesso de “Os Vingadores”, terceira maior bilheteria de todos os tempos.
“Foi uma glicose catártica. Queria voltar no tempo e dizer ao meu eu de 8 anos que no futuro vai ter um filme muito legal com aquilo que ele estava lendo”, exalta Érico Assis, tradutor de HQs e editor do site A Pilha, referindo-se à sensação de assistir ao longa. Ele afirma achar divertido o grande público descobrir e se envolver agora com uma integração que já existe nos quadrinhos desde os anos 1960. E que, na verdade, remete aos romances de folhetim e aos seriados de TV, em que o espectador vê um capítulo fraco como “Thor: O Mundo Sombrio” para não perder nada no próximo “Vingadores”. “Personagens mais importantes ganham filmes. Outros menores viram séries no Netflix, como acontece nas HQs com sagas mais ou menos importantes”, descreve.
Ao mesmo tempo, Assis credita a Marvel por fazer filmes para um público amplo, e não só para o leitor de HQ. “A DC, por outro lado, ainda se apega muito ao que os fãs pensam, como os xiitas do Superman, por exemplo, esquecendo do restante do público”, considera, explicando porque um sucesso que é bastante paritário nas HQs se desequilibra nas telas. “‘Guardiões’ é ‘Se Beber, Não Case’ com heróis. ‘Capitão América 2’ é um thriller político dos anos 1970. Eles sabem como adaptar a dinâmica a cada produto diferente, expandindo o clichê do filme de quadrinhos e colocando outros temas, que é o que o Chris Nolan fez com o Batman”, compara Maurício Muniz.
Liberdade. A colorista gaúcha Cris Peter – que já trabalhou não só para Marvel e DC, mas também para a editora Dark Horse, assinando séries de nomes como Deadpool e Gavião Arqueiro – tem uma explicação de quem atua nesse mercado há 13 anos. “Por mais que tenha sido comprada pela Disney, a Marvel mantém uma proximidade muito maior com a editora do que a DC, que é muito administrada pela Time Warner. E isso permite essa liberdade e essa ligação de universos”, argumenta. Conhecedora do estilo das duas editoras, ela aponta ainda outro motivo para o sucesso dos filmes da Marvel: o fato de eles não se levarem tão a sério. “A zoeira tomou conta da internet, hoje o público quer galhofa, e eles entraram nessa de fazer zoação dentro do filme. Daí, quando acontece um furo de roteiro, incomoda muito menos do que nos longas sérios da DC”, analisa.
Já o pesquisador e crítico de cinema pernambucano André Dib acredita que a Marvel não reinventou nenhuma roda. “Para atingir o maior público possível, eles eliminaram os riscos, apostando na narrativa mais convencional possível, das matinês dos anos 1950 e do cinema de aventura da década de 80”, analisa. Para ele, esse verniz de “sessão da tarde”, em que a história se baseia mais no carisma dos atores e dos personagens do que em um estilo narrativo e personalidade na direção ou montagem, é uma reprodução do cinema de produtor dos anos 1950, com a Marvel servindo como a assinatura “musical” da MGM ou “noir” da Warner na era de ouro de Hollywood.
“A Marvel nunca fez nada genial. Mas ela fez muitas coisas competentes”, avalia o crítico. A opinião é complementada pelo questionamento de Érico Assis. “Será que alguém vai se lembrar desses filmes em cinco ou dez anos? Provavelmente não, mas a Marvel não se preocupa com questão autoral. O que interessa é que o filme funcione agora, se pague e bola pra frente”, atesta. O problema, segundo os críticos consultados, é que essa é uma fórmula que pode cansar, especialmente com tantos filmes anunciados para os próximos anos podendo comprometer a qualidade. “Do mesmo jeito que as HQs não trazem histórias fantásticas todo mês, o maior desafio da Marvel é que isso vai virar linha de produção e vai deixar de ser tão legal, que foi exatamente o que me fez parar de ler quadrinhos de super-heróis”, prevê Maurício Muniz.