Em uma das (várias) ótimas cenas de “Aquarius”, cerca de seis ou sete mulheres em seus 60 anos conversam animadamente num bar. O caráter excepcional do momento não é só porque quase não se veem personagens femininas dessa faixa etária no cinema. Mas sim porque cada uma delas tem uma voz, uma personalidade e uma função ali. E foram todas escritas por um homem de 40 anos.
Pode não parecer, mas é muito difícil e raro que um homem tenha a disposição, a sensibilidade e o talento para mergulhar e representar o universo da mulher. E “O Silêncio do Céu”, um dos melhores filmes brasileiros do ano, é um exemplo disso. É um longa dirigido por um homem, a partir de um livro escrito por outro, sobre a reação de um homem ao estupro de sua esposa.
E o motivo pelo qual, ainda assim, ele funciona tão bem é que o diretor Marco Dutra confirma, desde a primeira cena, seu domínio inquestionável da linguagem cinematográfica. Ao sermos confrontados com o estupro da estilista Diana (Carolina Dieckmann), vemos a cena pelo olhar dela, em câmera subjetiva, mas o áudio, em momentos, é cortado – além de não ter voz, ela entra em choque e nem ouve o que está acontecendo. Só depois, quando revisitamos a cena pelo olhar do marido Mario (Leonardo Sbaraglia), com quem ela vive em Montevidéu, é que ouviremos os gritos e o horror do ataque.
Porque é pela dor dele, e pelo trauma dele, que vamos viver aquela experiência pelas próximas duas horas. E isso fica bem claro na ótima fotografia do uruguaio Pedro Luque (em cartaz também com “O Homem nas Trevas”), cuja câmera permanece quase imóvel no início, representando a paralisia causada pelo medo clínico de Mario. E, gradualmente, vai se movendo mais, à medida que o roteirista cria uma persona vingadora, meio Charles Bronson-“Desejo de Matar”, para tentar superar seu trauma.
Porque o medo, essencialmente, é uma recusa em encarar a realidade. Então, é como se Mario se desassociasse. E é exatamente o fato de que ele torna o estupro da esposa um acontecimento sobre si – sua paralisia, sua vergonha – que lentamente o torna repugnante e, ao mesmo tempo, universal, representativo dessa centralidade que o macho acredita ocupar em toda história.
Por um momento, ele parece quase gostar de saber de uma fragilidade de sua esposa, de não ser mais o medroso e ela a corajosa que sabe de todas as suas fobias. Dutra sabe disso. Sbaraglia também. E o longa deles é uma autópsia e uma denúncia disso.
O que incomoda é que isso significa que “O Silêncio do Céu” não dá muito espaço para Diana sentir sua dor. E mesmo isso é coerente. Sabendo das fobias e dos medos do marido, é como se ela fizesse o que quase toda mulher faz e tentasse proteger o parceiro e a fragilidade de um relacionamento que está tentando renascer após uma separação.
O rosto de Dieckmann comunica todas essas emoções conflitantes, que a personagem está tentando suprimir, de forma desoladora. E mesmo sem muito espaço, o longa dá a Diana um momento central para sentir o que aconteceu, numa cena em que ela lê uma fábula infantil com sua colega de trabalho – e a atriz brasileira mostra que a cara chorosa de Camila raspando a cabeça em “Laços de Família” é mais que uma piada.
É essa qualidade do elenco, associada ao talento de Dutra de extrair um suspense de arrancar as unhas das mínimas situações, o que torna o longa tão fascinante e envolvente. Há um plano em que o cineasta constrói uma montagem paralela no mesmo enquadramento, usando a profundidade de campo para colocar Mario, Diana e Néstor (Chino Darín) em foco, e o espectador igualmente envolvido e impactado pelo que cada um deles vai fazer. É com esse domínio que ele conta essa história, que começa no azul do céu e vai até o vermelho do inferno, do sangue e do vestido da protagonista no final. Uma jornada nada fácil, mas recompensadora para quem encará-la.
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O homem que não ouvia as mulheres
Com premissa controversa, filme funciona graças ao talento de diretor e atores
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