Em termos de “primeiros-casais” dos EUA, a mitificação em torno de Michelle e Barack Obama talvez só seja igualada à de ícones como Jacqueline e John F. Kennedy e Nancy e Ronald Reagan. A devoção em torno deles é de um nível tal que faz com que os dois tenham deixado de ser meros mortais no imaginário popular, pessoas de carne e osso, e se tornado um ideal – uma encarnação dos valores e da perfeição a que o “sonho americano” aspira.
Essa mitologia reverente é, ao mesmo tempo, a matéria-prima e o calcanhar de Aquiles de “Michelle e Obama”, que estreia nesta quinta (8). O longa do estreante Richard Tanne recria o folclórico primeiro encontro do casal, descrito pelos dois em inúmeras entrevistas. E seu maior mérito é a fidelidade convincente com que perpetua esse mito na tela grande, sem jamais ousar profaná-lo ou questioná-lo – o que é também seu maior defeito.
O ano é 1989. Barack (Parker Sawyers) é um estagiário na firma em que Michelle (Tika Sumpter) advoga há dois anos, em Chicago. Ele a convida para uma reunião em um centro comunitário. Ela aceita porque entende que isso não constitui um encontro – o que seria inadequado, dada a hierarquia dos dois. Mas, como Hillary descobriu oito anos atrás, Barack sabe chegar de mansinho e, com seu charme sorrateiro, conseguir o que quer.
“Michelle e Obama” tem início quando o futuro presidente chega à casa de sua chefe e anuncia que a reunião é só dali a quatro horas. Fumando compulsivamente, ele a convence a ir a uma exposição de arte africana e a um almoço no parque. Até aí, a “malandragem” de Barack não impressiona Michelle. Então, vem a reunião, em que ele vira “Obama” com um de seus famosos discursos inspiradores. Dali, é um pulo para uma discussão sobre qual é o melhor álbum de Stevie Wonder numa mesa de bar, acompanhada de duas cervejas, seguida de uma sessão de “Faça a Coisa Certa”, de Spike Lee – é bola na rede e correr para o abraço.
O irônico é que essa reunião, ponto central do longa, é a única trapaça do roteiro de Tanne. Na verdade, ela aconteceu bem mais à frente na história do casal. E apesar de ser um belo momento, em que ela claramente se apaixona por ele, é uma das cenas que mais incomoda. É um discurso muito maduro, de presidente, que parece mais um homem de 40 anos do que um jovem universitário.
Ela só funciona porque Sawyers faz uma reprodução impecável de Barack e sua oratória inconfundível. Com um personagem mais reconhecível, o ator trabalha no registro da “impressão” no corpo e, especialmente, na voz, com as entonações e as pausas de Obama. Já Sumpter opera num registro próprio, buscando trazer a sua personagem mais a atitude e a personalidade assertiva e autêntica de Michelle do que seus trejeitos.
A reação dela ao encontrar o chefe do escritório na saída do cinema e ouvir “ele é importante para nós. Trate bem dele” com um sexismo e um desdém repugnantes é um dos melhores momentos do filme. É um dos únicos em que ele ousa cutucar, de leve, a fachada do encontro perfeito, lembrando o incômodo de uma mulher tão inteligente e poderosa estar à sombra do marido.
“Michelle e Obama”, no entanto, não está interessado nisso. O que ele quer é eternizar os dois como a voz de uma América negra do futuro. O longa é um passeio por esse novo negro que nascia ali, com Spike Lee e “Faça a Coisa Certa” – com voz, que respondia, tinha opinião e que não se satisfazia com qualquer coisa.
Os longos discursos do roteiro de Tanne funcionam mais nesse sentido do que numa tentativa de reproduzir aquela magia “Antes do Amanhecer” de duas pessoas que se encontram pela primeira vez e se enxergam de um jeito que ninguém mais poderia. Na dúvida entre mito e romance, o filme prefere perpetuar o mito.