Não são versos fáceis os que abrem “Encarnado” (download em http://www.jucaramarcal.com), de Juçara Marçal. “Quero morrer num dia breve/ Quero morrer num dia azul/ Quero morrer na América do Sul”. Mas, em sua totalidade, a canção “Velho Amarelo” nos convida e nos comove de forma visceral. Trata-se de samba esquema bruto, um trabalho que arranca as tripas do gênero, feito por uma especialista nesse trabalho sujo (e lindo).
Apesar do extenso currículo (além de discos anteriores, já participou de trabalhos com Criolo, Emicida, Rômulo Fróes, Rodrigo Campos, entre outros) dá para dizer que “Encarnado” é uma espécie de estreia em disco para o gogó vigoroso e elegantíssimo de Marçal. “Se considerarmos que a cada trabalho estreamos algo de nossa expressividade artística que não estava evidente nos trabalhos que vieram antes, sim, esse é um disco de estreia”, diz. “Estreia não da cantora solista. Esta já está aí na lida há muito, mas pelo fato de, nesse trabalho, eu colocar o meu nome na frente”.
Com uma grande ajuda dos amigos: “Encarnado” emoldura a voz de Juçara nos arranjos belamente pincelados por Kiko Dinucci (guitarra), Rodrigo Campos (guitarra e cavaquinho) e Thomas Rohrer (rabeca). “Isso no fundo revela algo do jeito como o disco foi concebido: uma necessidade expressiva primordialmente minha. Eu fui o elemento catalisador, mas uma vez desencadeada a brincadeira, o jeito de pensar os arranjos seguiu dinâmica semelhante a de todos os outros discos, buscando a sonoridade juntos, experimentando formas, liberdade pra juntar e tirar referências, testar as possibilidades dos instrumentos, incluindo a minha voz, claro”, diz a cantora.
Isso se traduz sonoramente no disco em sambas– matéria prima basal– ruidosos, sem medo da sujeira, mas também em delicadezas como “Canção para Ninar Oxum”; em acenos ao rock nas ótimas “E o Quico?” e “Não Tenha Ódio no Verão” e à beleza clássica de “João Carranca”. Canções de Fróes e Campos, e também de Itamar e de Bosco e Blanc. de Siba, de Tom Zé,
Imagino que daí venha o título “Encarnado”: parece fazer referência aos compositores que de certa forma ela “encarna” com maestria no trabalho. “Legal! Não tinha pensado nesta significação, mas ela também cabe”, diz a cantora. “O nome veio aos poucos. Já tinha desistido de achar um nome que traduzisse aquele roteiro de música que construímos. Mas um dia, resolvi fazer um exercício, na busca de algo nesse sentido, e o verso de “Queimando a língua” (“Sua boca, seu dente, e o encarnado que corta e desmente meu samba armado”) é um que eu acho muito inspirado. Mas pra nome de disco seria muito longo, então bateu a ideia de usar a palavra “encarnado”. Em princípio, por causa do vermelho, que é sangue, que é vibrante, que simboliza vida. Depois vi que fazia sentido pela relação com o transe e também com a morte, elementos muito presentes no disco”, diz.