FORTALEZA. Um corpo esvaecendo e recortado por feixes de cor vermelha é ressaltado na tela “Bebedor de Sangue”, que, ao lado de várias outras, é exposta pela primeira vez na mostra “Arquivo e Memória Vivos”, em cartaz na Fundação Edson Queiroz, localizada em Fortaleza (CE), até julho. Concebido por José Leonilson Bezerra Dias (1957-1993), em 1992, um ano depois de ele descobrir ser portador do vírus da Aids, o trabalho vem a público por meio do esforço do Projeto Leonilson, que há 24 anos se dedica à preservação da produção e da memória do artista cearense.
Representativa de alguns dos temas recorrentes nas criações de Leonilson, especialmente durante a década de 90, como a fragilidade da condição humana e a questão da doença, a pintura é um dos 128 trabalhos exibidos na exposição, que tem cerca de 60% de conteúdo inédito. De acordo com Ana Lenice Dias, irmã de Leonilson, a montagem é um desdobramento da organização do catálogo “raisonné”, que vai reunir quase toda a produção do artista, estimada em, aproximadamente, 4.000 peças.
A iniciativa é pioneira e vai inaugurar esse tipo de tratamento dado à trajetória de um nome vinculado à arte brasileira contemporânea. “Essa exposição foi preparada para o lançamento desse catálogo, que traz à tona novas descobertas que fazem parte desse processo de finalização da nossa pesquisa. Algumas obras passaram a existir de uma forma mais forte a partir de agora. O objetivo dessa mostra, então, é surpreender o público com essa grande quantidade de trabalhos que nunca foram exibidos. E, além disso, queremos destacar que existe um percurso na vida de Leonilson e que ele não começou, por exemplo, com o bordado”, explica Ana Lenice.
Sessenta anos. Tanto a proposta expositiva quanto o lançamento da publicação, previsto para maio, são realizados no ano em que são comemorados os 60 anos de nascimento do artista. Ricardo Resende, que assina a curadoria da exposição e é um dos pesquisadores do Projeto Leonilson desde 1996, afirma que a mostra, como o catálogo, a ser dividido em três tomos, busca sublinhar a trajetória de Leonilson, chamando atenção para os três principais momentos de sua carreira.
“O primeiro volume traz registros dos primeiros trabalhos de Leonilson, entre 1970 e 1979. O segundo abrange a produção entre 1980 e 1990 e é o maior dos três. O último traz informações que vão de 1990 a 1993 e é o menor em número de páginas, porque este é o momento em que o artista também produziu menos, mas as obras mais vistas e comentadas são desse período. Por isso mesmo, houve a necessidade de se fazer uma edição especial para essa fase. Mas os três volumes são muito completos, com contextualização histórica e comentários críticos”, detalha Resende.
Do recorte da década de 1980, há na mostra uma série de pinturas numa escala maior do que aquelas que vieram depois, nos anos 90. Além de ser afetado pelas limitações físicas provocadas pela saúde debilitada ao longo do tempo, Leonilson, lembra Resende, costumava pintar suas telas apoiado numa mesa, o que, por sua vez, influenciava o tamanho de suas composições.
“Essa mesa, inclusive, se encontra na sede do Projeto Leonilson. Ela tem uma dimensão que é predominante nas telas dele. Ele recortava as pinturas a partir do tamanho dessa mesa que delimitou grande parte das proporções que são vistas nas pinturas da década de 80. Mais próximo do início dos anos 90, acho que essa questão da capacidade física dele pode ter provocado uma redução dessas proporções, a fim de ele se adaptar a um tamanho que considerava mais confortável para pintar”, afirma.
Obras “perdidas”.O catálogo e a exposição refletem a natureza processual desse tipo iniciativa, que é bastante flexível e possível de ser atualizada com a chegada de trabalhos recentemente identificados. O que aconteceu, por exemplo, na última segunda-feira. “Quando estávamos fazendo a catalogação, conversamos com um colecionador de São Paulo, que havia vendido uma obra, mas não nos deu pistas de quem a adquiriu. Por isso, não tínhamos como localizá-la, apesar de termos todos os registros catalográficos. Durante uma visita à exposição com educadores, uma das pessoas ligadas à Fundação Edson Queiroz relatou que o chanceler Airton Queiroz perguntou por que uma das obras de Leonilson de sua coleção não estava na mostra. Quando eu fui ver, a pintura era exatamente aquela que estávamos procurando”, relata Resende.
Batizada “Mãos de Rubi”, a obra, de acordo com ele, foi colocada ao lado de “Bebedor de Sangue”.
“Ela é de 1992 e faz parte de uma série de telas que Leonilson fez após um encontro que ele teve com uma cigana. Ele ficou muito impressionado com as coisas que ela disse, e isso aparece em vários dos seus trabalhos. No caso dessa pintura, ela se inseriu perfeitamente no início da exposição”, diz o curador.
Na Itália. Ana Lenice completa que outra surpresa surgiu quando souberam da existência de criações de Leonilson na Itália. “Nós nem imaginávamos que havia um desenho antigo dele lá. Ao longo da pesquisa, essas obras pipocavam, o que nos fazia cada vez mais adiar o lançamento do catálogo”, conta ela. Para a organizadora, a concretização do projeto pode inspirar outras edições semelhantes.
“Constantemente recebemos a visita da herdeira, que quer saber como se faz uma catalogação e como se monta um acervo, o que é muito legal. Então, eu acho que o catálogo vai incentivar essas pessoas a se dedicar a esse tipo de trabalho”, conclui ela, que está negociando a possibilidade de a mostra aportar também no Rio de Janeiro.
O repórter viajou a convite da Fundação Edson Queiroz