São Paulo. A baronesa de Goytacazes (Eliane Giardini) ouvia rádio no episódio da última quarta-feira de “Êta Mundo Bom!”, trama das 18h da Globo, quando foi interpelada por sua empregada, Maria (Bianca Bin). “Estava ouvindo a minha novelinha. Depois que você começa, não dá para perder mais um capítulo”, diz à funcionária a mãe do protagonista, Candinho (Sérgio Guizé).
A “novelinha” da baronesa é “Herança de Ódio”, uma radionovela real, que foi ao ar pela primeira vez há 65 anos, e agora tem trechos transmitidos em capítulos esparsos de “Êta Mundo Bom!”.
Fora da ficção, às segundas, quartas e sextas, ouvintes da Rádio Globo (às 7h30) e visitantes do site GShow também podem acompanhar o programa.
A radionovela está sendo adaptada por Otávio Martins, colaborador de Walcyr Carrasco, a partir de um dos textos mais conhecidos do paulista Oduvaldo Viana (1892-1972) – autor de “Predestinada”, a primeira novela radiofônica brasileira, de 1941.
Walcyr Carrasco conta que ele e “toda a família chorava” com o gênero. “Eu tinha uma trama de época e pensei: como dar um diferencial, que fale também com o jovem, que segue a internet? Como ampliar as fronteiras?”, se perguntava o autor.
Walcyr nasceu no mesmo mês em que a rádio Tupi paulista começava a transmitir “Herança de Ódio”: dezembro de 1951. Obviamente não se recorda dessa trama, mas guarda lembranças da infância, tempo em que acordava “cedinho” e ouvia radionovelas com a mãe, fã infalível do gênero, antes de ir para a escola.
“Boa parte das novelas tem uma estrutura que poderia se assemelhar à de ‘Êta Mundo Bom!’, com mães e filhos que tentam se encontrar”, ensina. “Não queria fazer uma que espelhasse a novela em si. A trama de Oduvaldo era ousada para a época, inovadora por ter um toque policial”. Trata da luta de um filho para limpar o nome do pai.
Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela USP, diz acreditar que a metalinguagem em “Êta Mundo Bom!” vai além da mera reprodução do texto de Viana.
“Se fecho os olhos (em um capítulo), me ligo diretamente à era do rádio, quando a família de meu pai ou de minha avó escutavam”. Para ele, o roteiro de Walcyr e a direção de Jorge Fernando emulam elementos do dramalhão sonoro. Um é o tema: a busca pela mãe biológica (“isso fez a festa de nove entre dez radionovelas”).
Outro é a prosódia carregada, com diálogos num tom declamatório mais acentuado do que o estilo típico do telenovelista: algo essencial naqueles tempos em que a atenção ao rádio era dividida com os afazeres domésticos.
Não que hoje seja tão diferente: a televisão briga pela concentração de sua audiência com outras telas, como a do celular – uma dispersão que chega a 70% entre os brasileiros mais jovens, de acordo com uma pesquisa recente encomendada pelo YouTube ao instituto Provokers.
Walcyr reconhece as semelhanças e diz que bebeu na fonte do rádio ao escrever “Êta Mundo Bom!”. “Foi proposital, não só no texto, como na estrutura. A radionovela buscava as emoções puras, intensas. Trabalhava com personagens arquetípicos”, afirma. “Eu busquei justamente esses arquétipos, as emoções que a minha mãe sentia e que eu, quando criança, sentia também”.
O diálogo com a obra de Oduvaldo Viana, o dramaturgo que ensinou os brasileiros a gostar de acompanhar uma história seriada, parece funcionar, por enquanto.
A saga de Candinho – que também flerta com o cinema de Mazzaropi e o romance “Cândido”, de Voltaire – foi a melhor estreia entre novelas das 18h da Globo desde 2010. A audiência da primeira semana (18 a 23/1) foi 24% maior do que o último mês da antecessora, “Além do Tempo”.
Para usar o texto, a emissora dependeu da autorização da Sociedade Brasileira de Autores.