Última peça escrita por Shakespeare, “A Tempestade” começa com um grande naufrágio. E a partir dos objetos e pessoas que emergem dessa tragédia, o protagonista Próspero busca restabelecer uma ordem que é não só política, retornando sua filha Miranda ao trono que lhe pertence, mas também natural, encontrando uma paz e uma trégua com a natureza tempestuosa do início.
Para transpor essa fábula, passada em uma ilha, para o universo brasileiro, o dramaturgo Gabriel Villela recorreu à cultura ribeirinha de sua infância mineira. A cenografia e o figurino são cobertos pela monocromia do barro – dando a eles uma história, um passado, a textura do naufrágio e uma “carga antropológica sincera e mineira” –, que chega a ser usada inclusive na maquiagem dos personagens.
Com a recente tragédia em Mariana, porém, esse passado coberto de lama por um acidente, que sonha em reencontrar um equilíbrio e uma redenção com a natureza, ganha uma ressonância involuntária e dolorosa na temporada do espetáculo em Belo Horizonte, de hoje a domingo, no Cine Theatro Brasil Vallourec. “É meio sinistro aquele barro deles, não dá para passar na cara. Estamos falando de um barro poético, aquele que não deixa o homem morrer – não aquele que mata o homem”, esclarece Villela.
A ideia de morte, no entanto, está bastante presente em “A Tempestade”, escrita por Shakespeare cinco anos antes de falecer, em 1616. “‘Pensamentos divididos entre a vida que me resta e a morte que me aguarda’. É muito bonito e muito emocionante dizer isso todas as noites. É uma peça em que você consegue perceber todas as obras dele. Por isso, é considerada um testamento, muito reflexivo, sobre a existência e sobre sua própria obra”, admite Celso Frateschi, veterano ator do teatro paulista que vive o protagonista Próspero.
O que essa iminência do fim causa no texto do dramaturgo é uma inversão da fórmula de suas tragédias, que normalmente partem da ordem rumo ao caos, causado pela vingança e as fraquezas humanas. Para Villela, “A Tempestade” é o contrário. “Ela começa no caos de um naufrágio e, a partir dele, o Próspero vai organizando essa fábula em que, no final, a vingança dá lugar à remissão dos pecados, à compaixão e às virtudes humanas. É uma peça de reconciliação, com seus pares e com a natureza, o microcosmo e um macrocosmo em equilíbrio novamente”, analisa o dramaturgo.
Essa intimidade e domínio do universo shakesperiano não são novidades para Villela, conhecido pelas antológicas montagens de “Romeu e Julieta” com o grupo Galpão e de “Sonho de uma Noite de Verão” com a Cia. de Dança do Palácio das Artes, entre outros trabalhos. “O Gabriel trata o Shakespeare como um companheiro de trabalho que mora em Minas, ou não muito longe, em algum rio ou bacia de Minas”, brinca Frateschi.
Não por acaso, “A Tempestade” nasceu aqui, como um projeto com o Galpão, numa ideia surgida logo após “Romeu e Julieta”, em 1992. Mas quando o grupo optou por “O Gigante da Montanha” na retomada da parceria com diretor, Villela levou a montagem para São Paulo, onde se reencontrou com uma série de atores com quem já havia trabalhado. Nove dos 11 integrantes do elenco são veteranos do dramaturgo.
“Não saiu para a rua, como era o interesse inicial com o Galpão, mas para um teatro de arena, com possibilidade para palco italiano, que é o que vai acontecer aqui em BH”, explica Villela. O que foi mantido de seu trabalho com o Galpão, porém, é o caráter incondicionalmente popular de suas montagens. E o elemento em que isso fica mais claro é no rico repertório “de canções ribeirinhas e de mar”, com a direção musical de Babaya e Marco França (leia mais na página 2).
“Queria sair do campo da erudição. Nada mais chato que um espetáculo popular muito elaborado, fica afetado, falso. Quem for vai reconhecer as cantigas e os rios a que se referem”, argumenta o dramaturgo. “A plateia chega para ver um Shakespeare todo pomposo, erudito, e vai se entregando”, sugere Frateschi.
De Minas, “A Tempestade” levou ainda o mobiliário de vasos e objetos cênicos feitos em Tiradentes e a “plasticidade poética” que Villela afirma ter vindo de seu trabalho com o Balé do Palácio. O resultado, para Frateschi, é um amálgama entre a poesia onírica de Shakespeare e o universo popular de Villela ainda maior que o visto em “Romeu e Julieta”.
“Nas mãos dele, a peça passa a ser muito brasileira, com questões que calcam fundo no coração da gente. O Gabriel consegue oferecer ideias muito bonitas, às vezes fortes, às vezes profundas, com uma extrema gentileza, sem assustar o público com a dimensão poética que o Shakespeare coloca”, analisa.
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