Em uma das principais cenas de "O Cantor de Jazz", de 1927, o protagonista Jakie Rabinowitz canta animadamente e conversa com a mãe, Sara, na sala da casa dela. O pai, um judeu ortodoxo que quer que o filho siga a tradição de cantores litúrgicos da família e abomina o gosto popular de Jakie, chega e grita: "Pare!".
O silêncio se abate. O cinema volta a ficar mudo. Para Eduardo Morettin, professor de cinema da Universidade de São Paulo (USP), a sequência marca bem a relação que vai configurar o início do cinema sonoro que tem início oficialmente com "O Cantor de Jazz", considerado o primeiro filme falado da história. Ao mesmo tempo em que já introduz o musical como gênero por excelência dessa nova fase, a cena deixa clara a resistência que a mudança vai sofrer pelos artistas do cinema mudo, "que já haviam construído uma linguagem muito sofisticada e bem definida àquela altura", explica Morettin.
O filme, estrelado pelo astro da Broadway Al Jolson, foi lançado em blu-ray no último dia 21 de março pela Warner, como parte da comemoração de seus 90 anos. Dirigido por Alan Crosland, o longa é um dos principais marcos da companhia criada em 1923, que entrou para os livros como pioneira no advento do som. Mais ainda, ele afirmou como um dos principais estúdios norte-americanos a Warner que, até então, só era mais conhecida pela cinessérie do astro canino Rin Tin Tin.
Morettin explica que, na verdade, "O Cantor de Jazz" é o primeiro filme com diálogos sincronizados, e não com som. O que acontecia no cinema mudo era que músicos eram contratados para fornecer uma trilha ao vivo para os longas durante a projeção nos cinemas.
"Mas filmes como `Aurora´, de Murnau, e `A Turba´, de King Vidor, já traziam discos com as músicas que deviam ser tocadas durante a exibição", conta.
A produção da Warner inovou ao trazer o protagonista cantando e alguns poucos diálogos em cena. O sistema que possibilitou isso, o Vitafone, também consistia num disco que era tocado separadamente. Ele seria utilizado até 1931, quando a banda sonora impressa diretamente na película se tornou a regra.
Mas, se essa novidade se tornou um sucesso que obrigaria toda a indústria cinematográfica a seguí-la - similar ao 3D ou à exibição digital hoje -, ela também foi criticada pelo retrocesso que representou em termos de linguagem. Narrativamente, "O Cantor de Jazz" é ainda um típico melodrama mudo. A maioria dos diálogos se dá em intertítulos; os enquadramentos são quase sempre planos gerais ou americanos, via de regra fixos; e a trama é bem simples, adaptada de um musical da Broadway, sobre o filho judeu que entra em conflito com o pai ortodoxo e sai de casa porque quer ser um cantor popular.
"O filme estreia no apogeu do cinema mudo, com o uso da câmera solta e histórias muito complexas e bem trabalhadas", analisa Eduardo. Com o advento do som, grande parte desse requinte visual é sacrificada em nome da sincronização de canções e diálogos. "Numa perspectiva artística e cultural, o olhar da época foi contaminado pelo lamento de que o cinema sonoro acarretou uma perda", explica o professor.
Além disso, outra crítica que macula a narrativa de "O Cantor de Jazz" vem na sua cena-clímax. Ao ser confrontado no camarim pela mãe e pelos produtores de seu espetáculo - e ser obrigado a decidir se vai cantar para o pai na celebração do Dia do Perdão Judeu ou fazer sua estreia na Broadway - o protagonista Jakie está usando a `blackface´. A maquiagem, que pintava o rosto de atores brancos para interpretarem personagens negros, e a peruca de cabelo crespo estão entre os piores símbolos do racismo norte-americano e são um tabu até hoje.
O blu-ray lançado pela Warner traz uma série de curtas produzidos com a tecnologia do Vitafone na época. Em um deles, Jolson aparece novamente cantando pintado de preto. "Historicamente, isso é um sinal de que o longa está inserido dentro de uma tradição em que a questão da raça é um problema", afirma Morettin. Assim como a presença da Ku Klux Klan no pioneiro "O Nascimento de uma Nação", dirigido por D. W. Griffith em 1917, é uma mancha que, ao mesmo tempo, faz do filme um registro cultural e histórico de sua época, e o torna mais importante pela inovação de linguagem do que pelo conteúdo da narrativa.
Clique e participe do nosso canal no WhatsApp
Participe do canal de O TEMPO no WhatsApp e receba as notícias do dia direto no seu celular
O portal O Tempo, utiliza cookies para armazenar ou recolher informações no seu navegador. A informação normalmente não o identifica diretamente, mas pode dar-lhe uma experiência web mais personalizada. Uma vez que respeitamos o seu direito à privacidade, pode optar por não permitir alguns tipos de cookies. Para mais informações, revise nossa Política de Cookies.
Cookies operacionais/técnicos: São usados para tornar a navegação no site possível, são essenciais e possibilitam a oferta de funcionalidades básicas.
Eles ajudam a registrar como as pessoas usam o nosso site, para que possamos melhorá-lo no futuro. Por exemplo, eles nos dizem quais são as páginas mais populares e como as pessoas navegam pelo nosso site. Usamos cookies analíticos próprios e também do Google Analytics para coletar dados agregados sobre o uso do site.
Os cookies comportamentais e de marketing ajudam a entender seus interesses baseados em como você navega em nosso site. Esses cookies podem ser ativados tanto no nosso website quanto nas plataformas dos nossos parceiros de publicidade, como Facebook, Google e LinkedIn.
Olá leitor, o portal O Tempo utiliza cookies para otimizar e aprimorar sua navegação no site. Todos os cookies, exceto os estritamente necessários, necessitam de seu consentimento para serem executados. Para saber mais acesse a nossa Política de Privacidade.