A história do mundo, como José Saramago já disse em “Ensaio sobre a Cegueira”, é a história das mulheres desfazendo os equívocos cometidos pelos homens. Porém, essa narrativa quase nunca chega aos livros da história oficial – e nem aos cinemas. Via de regra, elas são retratadas como a esposa, a namorada, a mãe. Se forem negras, pior ainda: serão quase sempre a empregada ou a escrava. Nos EUA da era Obama, isso mudou um pouco devido ao império de um furacão chamado Shonda Rhimes. Em suas séries, as mulheres – especialmente as negras – não são coadjuvantes, nem subalternas: elas passam por cima do sexismo e do racismo com seus saltos altos, seus belos figurinos, sua voz de comando, seu domínio profissional, seus cargos de poder, sua sexualidade sem desculpas e seu discurso impecavelmente elaborado. Elas são seres complexos e completos.
Dois filmes que estreiam nesta quinta-feira (2) são claros sinais dos efeitos do sucesso dessa fórmula no cinema hollywoodiano: “Estrelas Além do Tempo” e “Armas na Mesa”. O primeiro é a história real de três matemáticas negras – Katherine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (a cantora Janelle Monáe, que atua, e bem) – que trabalharam na Nasa durante a corrida espacial dos anos 60. E o segundo é uma ficção sobre uma lobista implacável de Washington, Elizabeth Sloane (Jessica Chastain), que decide atuar na campanha por uma nova lei de regulação da compra de armas.
Os dois carregam os principais traços das séries de Rhimes: uma decupagem absolutamente tradicional e voltada para a clareza da história; figurinos e direção de arte requintados que ressaltam o status de suas protagonistas; e uma montagem ágil calcada em diálogos por vezes engraçadinhos, em outras, discursivos ou expositivos – mas sempre disparados com a velocidade de uma bala. E acima de tudo, mulheres extremamente competentes afirmando sua superioridade no campo de trabalho, donas da última palavra, nem sempre boazinhas e que se recusam a se curvar aos homens – que são meros satélites gravitando em torno de suas histórias.
Um trocadilho perfeitamente aplicável no caso de “Estrelas Além do Tempo”, ainda que – claro – o empoderamento de suas protagonistas não tenha sido tão simples assim. Katherine foi uma das principais responsáveis pelos cálculos que fizeram de John Glenn (Glen Powell) o primeiro norte-americano a entrar em órbita em torno da Terra, mas seus relatórios eram assinados por seu chefe menos competente (Jim Parsons). E ela fazia o mesmo trabalho de todos, enquanto atravessava todo o campus para usar o banheiro das mulheres negras, do outro lado da Nasa.
Já Dorothy realizava as funções de supervisora, mas não era promovida por ser negra. E Mary Jackson precisava se tornar engenheira para avançar na carreira, mas a única faculdade que oferecia o curso em Atlanta era segregada e não aceitava... adivinhe.
O grande mérito do roteiro de Allison Schroeder – única mulher indicada ao Oscar da categoria em 2017 – é não tratar as três como vítimas, nem heroínas idealizadas. O filme do diretor Theodore Melfi (“Um Santo Vizinho”) confere ao trio uma vida profissional, mas também familiar e sexual – uma complexidade que Hollywood quase nunca dá a personagens negras. E só derrapa nas cenas em que associa o sucesso delas à aprovação paternalista do chefe branco (Kevin Costner).
No humor atrevido de Mary Jackson e na correria de Katherine pelo campus, “Estrelas” é um filme que quer agradar bem mais ao público do que aos críticos. É uma produção simples, sem firulas e de tom bem popular – e seu objetivo é esse. Contar a história dessas mulheres, cuja importância viveu à sombra de heróis masculinos e brancos, para meninas do mundo todo. Anualmente, Hollywood produz uma enxurrada de biografias medíocres de homens brancos. Quando faz uma assim do sexo oposto (“As Sufragistas”, por exemplo), os críticos logo taxam de “filme de mulherzinha” – o que vem a ser mais uma forma de sugerir que seus feitos não merecem o mesmo espaço no cânone da história oficial. Se depender de Shonda Rhimes & cia., esse não será mais o caso.
“Armas na Mesa”
Thriller político revela “como se faz a linguiça” nos bastidores de Washington
FOTO: Paris / Divulgação |
Mulheres vividas por Chastain e Mbatha-Raw dominam o filme |
O cabelo e a maquiagem de Elizabeth Sloane estão sempre perfeitos. Suas roupas são geométricas e monocromáticas. Ela anda e fala com a rapidez de seu cérebro. E começa “Armas na Mesa” falando que “o segredo de ser lobista é estar sempre um passo à frente de seu oponente” – e por isso, ela tem Washington na palma da mão. Sloane é basicamente a Olivia Pope de “Scandal”, só que ruiva e sem um caso com o presidente.
Não por acaso, o roteiro do estreante Jonathan Perera tem as mesmas reviravoltas, manipulações emocionais e a moralidade cinza da série de Rhimes. E o fracasso do thriller político na temporada de premiações e nas bilheterias dos EUA pode ser atribuído exatamente ao fato de que “Scandal” e “House of Cards” diluíram e saturaram esse tipo de produto. Mas, principalmente, porque, após as últimas eleições, ninguém quer ser exposto à sujeira de como a linguiça é feita em Washington – ou à dor de uma mulher competente e implacável sofrendo o revés de combater o patriarcado político.
E Sloane domina todos os piores truques desse jogo de poder. Acostumada a usar seu arsenal para o lado sombrio da força, ela decide mudar quando é contatada pela indústria de armas, que quer derrubar um novo projeto de regulação com o apoio das mulheres. Sloane gosta da ideia, só que resolve usá-la para o lado contrário.
O longa de John Madden (“O Exótico Hotel Marigold”) pega sua inspiração nessa afirmação de que “a luta pelo controle de armas será decidida pelas mulheres”. Todas as reviravoltas e engrenagens de “Armas na Mesa” giram em torno das personagens femininas – com Gugu Mbatha-Raw e Alison Pill encarando a protagonista de frente.
Mas o filme pertence a Chastain. Sua Sloane é fria, calculista, sexual, inteligente, sempre no comando da cena. E quando sua vida pessoal começa a sofrer ataques dos adversários, a atriz mostra uma mulher que, mesmo em turbulência interna, sabe que nunca vai vencer seus inimigos se não olhá-los no olho e desafiar seus blefes sem tremer.
Assim como ela, as mulheres do longa não são boazinhas, com moralidades, ambições e tomam decisões questionáveis – curiosamente, o único personagem realmente bom e íntegro é um garoto de programa (o sempre bondoso Jake Lacy). Essa constatação de que não se pode vencer jogando limpo em Washington não atraiu muito os norte-americanos, mas “Armas na Mesa” é um thriller inteligente e divertido, com um ótimo elenco. E dados os últimos eventos na Casa Branca, nem mesmo sua reviravolta final soa tão impossível assim. (DO)