O universo que Joca Reiners Terron criou em "A Triste Extraordinária do Leopardo-das-Neves" é, em analogia livre, como os encontros furtivos que acontecem perto de cada um na vida cotidiana. Pode-se encontrar o vizinho na rua, por exemplo, saber o rosto, até trocar algumas impressões, mas muito raramente se vai saber exatamente quem é aquela pessoa. E, assim, na vida e na ficção de Terron, histórias paralelas vão se cruzando sempre em algum ponto, ainda que sem se pertencerem de fato. "Nós tendemos a cruzar com tantas pessoas ao longo da vida, gente que conhecemos e não conhecemos. Na nossa existência, somos afrontados com essa limitação o tempo todo. Nunca vamos conhecer o outro na sua totalidade, somos sempre confrontados pela superfície do outro.
Acho que é isso que acaba instigando a literatura moderna", comenta o escritor, que, logo mais, às 19h30, vai se encontrar com o público de Belo Horizonte no lançamento pela editora Cia. das Letras de seu novo romance, que chegou às livrarias não faz nem uma semana e tem hoje sua primeira apresentação pública. "É o lançamento mundial em Belo Horizonte", brinca Terron.
Na trama, o escritor traça duas histórias paralelas, mas que se tocam o tempo inteiro, ainda que isso só vá ficar claro bem mais adiante na caminhada em que o leitor segue guiado pelo narrador, um escrivão da polícia que leva vida dupla trabalhando também na mercearia do pai, já um homem velho e completamente à parte da realidade, com quem o narrador tem uma relação de emoções contraditórias.
Sabe-se desde o começo que um crime aconteceu, mas é uma longa viagem até vir à tona contra quem e como se deu. "Acho que inclusive os textos-aparatos que vêm na orelha e na contracapa não traduzem a história. Não é um mero livro de ação, é uma história sobre a perda de alguém querido e, sem dúvida, sobre a inadequação de cada um na sociedade. As questões de identidade e morte são temas que eu já vinha tratando em outros livros e que de alguma forma sempre insistem em aparecer no meu trabalho", avalia Terron.
Muito mais que um enredo de ação, trata-se uma trama psicológica, em que a violência, apesar de não necessariamente explícita, ecoa nas direções tomadas pelos personagens e que retumba também no leitor. E, ainda que dialogue - e muito - com o que é verossímil, sobre "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves" paira também uma espécie de fabulário, que começa a se revelar quando o autor conduz o leitor para dentro das memórias, aflições e curiosidades nutridas por seus personagens - e que continua em pequenos detalhes, como na capa vermelha que esconde uma dessas personas que habitam o Bom Retiro, bairro icônico do centro de São Paulo, cenário de partida para a trama de histórias entrecruzadas e sem compromisso com a cronologia.
"Neste livro, especificamente, está bem presente um tom fabular. O narrador acha que não tem imaginação e precisa contar histórias para o pai. Então ele adota mesmo o tom do relato policial, jornalístico até, mas ele delira. Na hora foi intencional o uso de alguns jargões, mas só agora começo a refletir sobre o livro. Se começamos a refletir durante, não fazemos", comenta o escritor, que reconhece, também, algumas pitadas de humor no meio da narrativa densa. "Mas é um humor meio estranho, porque é só assim que eu sei fazer", brinca.
HABITAT. Natural de Cuiabá, no Mato Grosso, mas radicado em São Paulo há praticamente 20 anos, Joca Reiners Terron faz ainda, em "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-neves", um retrato significativo de um pedaço da capital paulista. "O bairro do Bom Retiro talvez tenha sido o elemento que me despertou para essa história. Foi um livro escrito muito rapidamente. Fiz uma primeira versão em cerca de um mês, durante um período em que eu estava desenvolvendo para o Teatro da Vertigem uma dramaturgia de um espetáculo a ser encenado ali. Passei cerca de três meses convivendo pelo menos cinco horas por dia, de segunda a sexta, andando pelas ruas, conhecendo os becos. O clima do bairro acabou se impondo como cenário. De qualquer maneira, sempre tive um grande fascínio pela região central de São Paulo. É onde tem de tudo, onde se cruzam tradições e povos diferentes, onde há desde a riqueza mais nobre até a pobreza mais aviltante", conta Terron.
Depois dessa primeira versão, o livro ficou na gaveta por um tempo, pedindo ainda um algo mais. "Terminou o período de pesquisa com o grupo e a história ficou um ano e uns meses esquecida. Pronto o trabalho com o Teatro da Vertigem, percebi que a trama estava manca, outras questões surgiram e me veio a necessidade desse narrador", lembra o escritor, citando as duas tramas criam a unidade do romance. "É como se fossem dois livros que se encontram", define.
Alternando-se em uma vida quíntupla - traduções, crônicas e contos, escrita para teatro, design gráfico etc... -, Terron avalia que, ainda que tudo faça parte do processo criativo da escrita, o gênero romance é o que mais lhe absorve. "São funções que raramente se encontram. Podem até se assemelhar nas questões da lírica e tal, mas o processo de imersão é muito diferente em cada um. O romance é o mais exigente. Ele precisa ser vivenciado todo dia, precisa entrar na rotina e o escritor precisa começar a pensar como aquele personagem", sentencia.
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Fabulário pé no chão
Joca Reiners Terron lança hoje em Belo Horizonte seu novo romance, "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves", dentro do projeto Ofício da Palavra
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