MEMÓRIA

Os 500 anos de Luís de Camões, poeta que ‘fundou’ a língua portuguesa

Autor de ‘Os Lusíadas’ é celebrado no Dia Mundial da Língua Portuguesa

Por Alex Bessas
Publicado em 06 de maio de 2024 | 09:14
 
 
 
normal

“Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”, canta Caetano Veloso logo no primeiro verso da música “Língua”, lançada originalmente em 1984, no álbum “Velô”. É com esse mesmo apreço e desejo que, agora, a premiada escritora lisboeta Cristina Drios empresta ao falar sobre as celebrações dos 500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões, poeta que, com sua obra, imortalizou a língua portuguesa.

“Todos somos herdeiros da tradição camoniana, num sentido lato. Passados que estão cinco séculos, 500 anos de vivências de diferentes gerações temporais, geográficas e culturais, Camões continua a cativar-nos e a manter-nos cativos da sua arte, da palavra e da língua portuguesa”, defende a autora portuguesa residente no 19º Festival Literário Internacional de Poços de Caldas (Flipoços), ao recordar que, neste ano, o mundo celebra meio milênio desde o nascimento do poeta nascido, provavelmente, em 1524, nas proximidades de Lisboa, cuja obra se perpetuou embora sua própria identidade seja cercada de inconsistências e informações desencontradas.

“Saber-se pouco sobre Camões – em razão de os historiadores não terem chegado até fontes documentais fidedignas e credíveis – não impacta minimamente a qualidade e a importância da obra que nos legou. O mesmo acontece com outros grandes das letras, como Shakespeare, ou da pintura, como Caravaggio, sobre o qual versa o meu livro ‘Adoração’ (publicado no Brasil em 2023, na Coleção Atlânticos, pela Editora Pontes)”, analisa Cristina, complementando que, enquanto escritora de romance histórico, são essas lacunas que lhe permitem criar, preenchendo o vazio dos fatos com o poder da imaginação.

Ela lembra que, considerado um dos maiores expoentes da literatura em língua portuguesa, Camões fez de sua obra-prima, “Os Lusíadas”, um épico que narra as aventuras dos navegadores portugueses. O poema de 1572, no caso, fala da descoberta da rota marítima para a Índia pelo navegador português Vasco da Gama (1469-1524), registrando passagens da história lusitana, descritas com pitadas de heroísmo e glorificação, enquanto se dirige ao rei Sebastião I (1554-1578). Uma narrativa que, para a escritora, contribuiu, em primeiro lugar, para a formação da identidade nacional portuguesa. 

“Essa identidade funda-se numa partilha de valores, de conceitos, e entre outros denominadores comuns, de uma língua. São fatores que unem uma comunidade, num sentimento de pertencimento. A língua portuguesa tornou-se nesse elo de comunicação e emoção unificadora de uma vastíssima comunidade de falantes, a lusofonia”, reflete, acrescentando que a obra do escritor “nunca deixará de influenciar a cultura portuguesa”, diz, lembrando que “Os Lusíadas” segue, ainda hoje, sendo estudado, recitado e admirado não apenas por sua beleza e minúcia literária – estruturalmente, são dez cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos, todos em oitavas decassilábicas –, mas também por seu papel na formação da identidade portuguesa e na influência que exerceu sobre a língua que falamos. 

A escritora portuguesa Cristina Drios

Por todos esses contributos que, ao falar sobre o autor, Cristina é enfática: “Camões foi um poeta genial”, crava. “Genialidade que se tornou palavra, poesia, quer em ‘Os Lusíadas’, quer sobretudo na lírica, na forma como expressa a saudade e o amor: ‘Aquela cativa/ que me tem cativo/ porque nela vivo/ já não quer que viva’”, avalia, recitando versos que, em seguida, classifica como atemporais. “Esse legado está vivo em todos nós, portugueses, desde os bancos da escola. Está vivo nos cantores que o cantaram e cantam, de Amália a José Afonso, a Salvador Sobral. Está vivo nos escritores de Saramago a Mário Cláudio, de Agustina Bessa Luís a Hélia Correia”, defende.

Dia da língua de Camões

Descrevendo o Dia Mundial da Língua Portuguesa, comemorado anualmente em 5 de maio, como uma celebração do lugar especial e único a que pertencem todos os falantes do idioma no mundo, a escritora Cristina Drios lembra que a data foi escolhida por coincidir, supostamente, com o nascimento de Luís Vaz de Camões, enquanto 10 de junho, data certa de sua morte, marca o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. “Isto diz da importância do seu legado”, resume.

Por sua vez, Jacyntho Lins Brandão, presidente da Academia Mineira de Letras (AML), acrescenta que existem outras mais oportunas coincidências que ligam o Dia Mundial da Língua Portuguesa ao legado camoniano. “É sintomático que ‘Os Lusíadas’ seja um poema sobre as grandes navegações, que levaram à expansão de Portugal, sendo esse o processo histórico que permitiu que a língua portuguesa se tornasse uma das mais faladas do mundo”, examina, ponderando que os primeiros documentos em português já identificados são as cantigas medievais do século XII, que tinham influência provençal, sendo de uma época em que a língua era tratada ainda como linguagem, em um sentido quase pejorativo. 

“Já Camões surge no contexto do Renascimento, período caracterizado por uma retomada das tradições do grego e do latim. É nesse cenário que vem a novidade principal de Camões, ‘Os Lusíadas’, inspirado pela Ilíada e Odisseia”, diz, fazendo referência a duas obras de Homero, poeta grego da Antiguidade que narrou a fundação de Roma em poemas escritos, provavelmente, na virada do século VIII a.C. para o século VII a.C., sendo considerados fundamentais no cânone da literatura ocidental. “Camões, por sua vez, a partir destas referências, escreve esse longo poema épico, que se torna um dos principais da época dele, celebrando as grandes navegações e a história de Portugal”, contextualiza, reforçando que o autor foi fundamental para que o idioma ganhasse um novo status.

“Uma coisa importante é que ele promove uma expansão do léxico português, se aproveitando da criação de neologismos buscados no latim, principalmente, mas também no grego, em um processo que não é diferente do que está acontecendo nas outras línguas europeias neste momento do Renascimento”, aponta, reforçando que, ao escrever “Os Lusíadas”, Camões colaborou para a formatação e reconhecimento de um conjunto de palavras portuguesas disponíveis para que as pessoas se expressassem oralmente ou por escrito.

Um clássico e seu desafio

Presidente da Academia Mineira de Letras (AML), Jacyntho Lins Brandão lembra que, no século XX, a obra de Camões costumava ser usada para fins educacionais, nas aulas de língua portuguesa. “Mas esse tipo de coisa mata o poeta”, reclama, dizendo que o mais adequado seria trabalhar de uma perspectiva literária um texto que é literário. Cristina Drios concorda. Para ela, a obra de Camões não pode, nem deve, ser adaptada ou simplificada para, então, entrar no currículo escolar. “Deve ser lida e ensinada enquanto clássico que é”, sustenta, reconhecendo o enorme desafio – sobretudo para os professores – de conseguir tornar seus textos apelativos para as gerações atuais.

Jacyntho Lins Brandão, presidente da Academia Mineira de Letras

“Devemos lembrar que, da mesma forma que alguém que fala inglês, seja na Inglaterra ou nos Estados Unidos, em vários pontos do ensino, vai se dedicar a estudar Shakespeare, seria interessante que Camões participasse das atividades dos estudantes sem reduzir o poeta ao ensino da gramática, por exemplo”, complementa Brandão, para quem, assim como Caetano Veloso celebra a língua portuguesa em sua canção, sobram motivos para celebrar o quingentésimo aniversário do poeta lusitano, cuja língua roçou a de tantos outros poetas e escritores, inspirando-os a criar, a sonhar e a manter viva a chama da nossa língua comum, ainda que com suas tantas variações.

SERVIÇO:
O quê. Dia Mundial da Língua Portuguesa na Academia Mineira de Letras com a escritora portuguesa Cristina Drios
Quando. Nesta terça-feira (7), a partir de 14h
Onde. Auditório da Academia Mineira de Letras (r. da Bahia, 1.466, Lourdes)
Quanto. Gratuito.

PROGRAMAÇÃO:
14h às 15h - Oficina “Introdução à Escrita do Romance Histórico”
16h às 17h - bate-papo “Comemoração do Dia Nacional da Língua Portuguesa: A Língua Portuguesa como herança”.

Curiosidades sobre a língua portuguesa

  • Marco. O Dia Mundial da Língua Portuguesa é comemorado em 5 de maio. A data foi oficialmente estabelecida em 2009 pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), uma organização intergovernamental que reúne os povos que têm a língua portuguesa como um dos fundamentos de sua identidade específica.
  • Ranking. Segundo o Instituto Camões, a língua portuguesa é a quarta mais difundida no mundo, com mais de 260 milhões de falantes (3,7% da população mundial), ficando atrás apenas do mandarim, inglês e espanhol. Os dados são de 2022. Além disso, o idioma é o mais falado no hemisfério Sul.
  • Nacionalidades. Além do Brasil e de Portugal, a língua portuguesa é a língua oficial de outros sete países, incluindo Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
  • Celebração. Para celebrar o Dia Mundial da Língua Portuguesa, os países lusófonos costumam desenvolver atividades que valorizam a língua portuguesa, incluindo encontros com escritores, conferências, apresentações de peças de teatro, transmissão de filmes e recitação de poesia.
  • Atualização. O português que conhecemos hoje passou por uma longa trajetória de evolução, desde suas raízes no latim até as influências de várias culturas, como a árabe, grega e africana.
  • Peculiaridades. O idioma, é verdade, possui suas peculiaridades. Por exemplo, existem palavras na língua portuguesa que possuem mais de uma grafia correta, como “berinjela”, que também pode ser escrita como “beringela”, e “diabetes”, que pode aparecer também como “diabete”. Já a palavra “quaisquer” é única na língua portuguesa porque o plural pode ser percebido no meio da palavra, e não no final, como é comum em outras palavras.
Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!