Cinema

Mostra revisita primeira década da obra do cineasta Joel Zito Araújo

Nove filmes do diretor mineiro, realizados entre 1987 e 1997, serão exibidos em BH

Por Alex Bessas
Publicado em 24 de abril de 2024 | 06:30
 
 
 
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“Eu nunca tive a preocupação de ter uma linguagem só. Estou sempre experimentando, testando diferentes linguagens. É minha característica enquanto cineasta. O que acho que tem unifica o meu trabalho é um olhar crítico para a questão racial no Brasil”. A reflexão foi feita pelo cineasta Joel Zito Araújo durante conversa por videochamada com a reportagem de O TEMPO, em que, espontaneamente, se pôs em um exercício de autoanálise, especialmente oportuno por acontecer na véspera da realização de uma mostra que vai revisitar a primeira década de sua obra no cinema, quando, a partir desta quarta-feira (24), nove filmes do realizador serão exibidos em três espaços culturais de Belo Horizonte. 

Com curadoria e realização dos cineastas Álvaro Andrade e Vinícius Andrade, a mostra “Joel Zito Araújo: Uma Década em Vídeo” traz produções em formato vídeo, lançadas entre 1987 e 1997, e propõe um recorte aos processos históricos presentes na obra do realizador nascido em Nanuque, no Vale do Mucuri, e radicado em São Paulo. Além disso, integrando a programação do projeto, o próprio homenageado vem a BH para uma aula magna nesta sexta-feira (26).

“O convite foi uma saudável e alegre surpresa, porque, na época, eu considerei que esses dez primeiros anos – em que não rodei longas, apenas curtas e médias metragens –, como um período de exercício de domínio técnico do fazer cinema, de forma que me preocupei pouco com a conservação desses trabalhos”, lembra, agradecido pelo trabalho realizado pelos curadores de reunir e recuperar os principais vídeos da primeira fase da sua produção cinematográfica. “Alguns estavam guardados aqui em casa e já haviam passado por sucessivos processos de transformação técnica até o digital”, pontua. “Outros, foram resgatados, como o ‘São Paulo abraça Mandela’ (1991), que foi um trabalho muito interessante”, situa.

Na obra em questão, que será exibida na mostra, Joel documenta a visita de Nelson e Winnie Mandela à capital paulista, registrando o seu encontro com a comunidade negra e os movimentos sociais atuantes na cidade. “Naquele período, a TVT (TV dos Trabalhadores, emissora de televisão brasileira concessionada em Mogi das Cruzes e sediada em São Bernardo do Campo, em São Paulo) me convidou para dirigir e acompanhar a visita deles ao Brasil, que aconteceu logo depois do Mandela ser solto”, recorda, dizendo que aquela foi uma experiência extraordinária não só do ponto de vista cinematográfico: “É uma história preciosa na minha vida pessoal”.

Militância em cena

A mostra “Joel Zito Araújo: Uma Década em Vídeo”, explicam os curadores e organizadores  Álvaro Andrade e Vinícius Andrade, é dividida em três campos temáticos: “Vanguarda das Lutas: Mulheres Negras na Conquista de Direitos”, “Movimentos Negros: Faces de uma Luta Coletiva” e “Das Fábricas às Ruas: Memória e Atualidade das Lutas Trabalhistas no Brasil”. Em comum, portanto, o tema social permeia todas as obras selecionadas, o que reflete com precisão a forma como o realizador foi introduzido ao fazer cinema.

“A minha porta de entrada no cinema foi o movimento cineclubista mineiro”, lembra Joel, mencionando que, essa primeira fase da sua formação, coincidiu com a emergência de um pujante movimento estudantil e sindical. “Logo, essa minha atividade se mesclou com esses movimentos”, rememora, citando ter montado um cineclube no núcleo de psicologia da Fumec (onde se graduou psicólogo). “Depois, participei da montagem de um circuito de cineclubes na área operária de BH. É nessa época que começo a descobrir a possibilidade de ser cineasta, experimentando com uma Super 8 justamente em um período de efervescência política diante da luta pela derrubada da ditadura”, situa.

“Logo depois, me transfiro para São Paulo, onde vou trabalhar para um órgão de assessoria sindical, o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)”, comenta, acrescentando ter tido passagem também pelo Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Telecomunicações do Estado de Minas Gerais  (Sinttel). “Todo esse processo fez que o ato de fazer cinema, nesses primeiros anos, estivesse muito ligado à militância sindical e política”, explica, pontuando que, nessa fase, sua consciência racial ainda estava abafada por essas outras atividades. 

Tomada de consciência

“É quando chego em São Paulo e começo a fazer meus primeiros trabalhos aqui que vou descobrir a importância do debate racial, tomando consciência que o cinema brasileiro pactuava com o mito da democracia racial”, reflete, dizendo que, a partir de então, passa a refletir sobre o tema nos seus trabalhos. “Isso me projeta em certos grupos sociais, me fazendo ficar conhecido em alguns meios antes ainda que eu me tornasse um nome nacional no cinema”, detalha, mencionando, por exemplo, que o filme “Retrato em Preto e Branco” (1992), um curta-documentário estruturado como uma vídeo-carta de um homem negro denunciando a persistência do racismo na sociedade e na mídia brasileira, foi apresentado em mais de 8.000 escolas do país à época.

“Nesse primeiro momento, existia uma certa clivagem entre os faziam um cinema, no formato vídeo, mais ligado aos movimentos sociais e aqueles que o faziam de uma perspectiva mais de arte”, avalia ele, que, no período, atuou como secretário-geral da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), que congregava realizadores que tinham a preocupação de fazer trabalhos na área social, como Vincent Carelli, indigenista e cineasta, que criou, em 1986, o Vídeo nas Aldeias. “Na outra ponta, tinha o pessoal da videoarte. Sou contemporâneo, por exemplo, do Fernando Meirelles, em São Paulo, e do Eder Santos, em BH, mas a gente andava meio separado. E isso só mudou depois que comecei a fazer longas e passamos a estar no mesmo campo, ir aos mesmos festivais, tendo interesses em comum”, sublinha.

Obras contempladas

Reforçando existir um alinhamento político assumido entre Joel Zito Araújo e os movimentos sociais, o curador Álvaro Andrade cita “A exceção e a regra” (1997) como um dos mais importantes e representativos filmes da trajetória do homenageado. O média-metragem, que será exibido na mostra, registra a luta de Vicente do Espírito Santo, um trabalhador que, vítima de racismo, perde o emprego, mas reage e vai à Justiça buscar reparação. É justamente esta luta por reparação que o realizador acompanha no filme.

Cena de 'A exceção e a regra', de Joel Zito Araújo
Cena de 'A exceção e a regra', de Joel Zito Araújo

Primeiro trabalho em cinema de Joel Zito, “Nossos Bravos” (1987) também será apresentado em Belo Horizonte. A produção, considerada docudrama, reconstitui as movimentações trabalhistas no início do século XX, apresentando a formação do sindicalismo brasileiro a partir das lutas de operários.

Além destes e dos já citados “São Paulo abraça Mandela” e “Retrato em Preto e Branco”, a mostra exibe também “Memórias de classe” (1989), um documentário sobre o cotidiano e a luta dos trabalhadores da geração dos anos de 1930 no Brasil, trazendo, por meio das memórias de uma feminista e quatro sindicalistas, as diversas faces da experiência de organização dos trabalhadores, e “Almerinda, uma mulher de trinta” (1991), que resgata a história de vida da militante feminista dos anos 1930 Almerinda Farias Gama, participante da luta pelo direito de voto da mulher, na Constituinte de 1934, e ativista da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, junto a Bertha Lutz.

Completam a seleção de filmes, “Alma negra na cidade” (1991), em que Joel retrata a afirmação da comunidade negra no espaço urbano de São Paulo e traz dois cantores, um poeta, uma empresária, uma empregada doméstica, uma mãe de santo e um jovem, todos afro-brasileiros, contando suas origens, trajetórias de vida, sonhos e angústias; “Homens de rua” (1991), que joga luz sobre as vivências de homens e mulheres obrigados a sobreviver nas ruas de São Paulo, retratando a vida de pessoas que perderam os trabalhos, se distanciaram dos afetos e tiveram suas identidades desintegradas também está presente na seleção; e “Eu, Mulher Negra” (1994), que traz imagens e vozes que carregam a experiência de diferentes mulheres negras, tendo como eixo os problemas e desafios enfrentados com o cuidado com saúde reprodutiva feminina.

Cena do vídeo 'Eu, Mulher Negra', de Joel Zito Araújo
Cena do vídeo 'Eu, Mulher Negra', de Joel Zito Araújo

Todas as obras apresentadas serão disponibilizadas aos espaços culturais que abrigam as exibições e ao acervo do Cine Santa Tereza. Os trabalhos também serão cedidos para escolas públicas de Belo Horizonte. No segundo semestre deste ano, a mostra “Joel Zito Araújo: Uma Década em Vídeo” ganhará quatro edições na região que compreende o norte de Minas Gerais e o extremo sul da Bahia, região onde o cineasta nasceu e viveu até a sua juventude.

Presença

Além de exibir uma seleção de nove filmes representativos dos primeiros 10 anos de Joel Zito Araújo como realizador de cinema, a mostra ainda traz o homenageado pessoalmente a Belo Horizonte para uma aula magna, que será realizada nesta sexta-feira (26), às 19h, no Cine Santa Tereza. A roda de conversa conta com participação do grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. 

“A minha expectativa é que as pessoas tenham interesse em ir e a gente possa conversar, pois é uma atividade para a cidade toda e todos que vierem serão muito bem-vindos”, inicia o diretor, que admite nutrir o desejo de, nesta visita à capital mineira, encontrar com pessoas da nova cena do teatro e do cinema negro. “Eu acompanho essa nova cena belo-horizontina, do cinema negro mineiro, do pessoal da Filmes de Plástico e do pessoal de outros cineastas importantes da nova geração que eu gostaria de encontrar e conversar, assim como, desde o surgimento da Grace Passô, acompanho o teatro negro mineiro”, expõe. “Também vai ser uma oportunidade para ver o pessoal mais antigo, como Adir Assunção, que é amigo meu de 30 anos ou mais”, complementa.

Presente

Documentário, docudrama, vídeo-carta… A diversidade de linguagens de cinema experimentadas na primeira década de produção de Joel Zito Araújo segue pautando o seu trabalho como diretor atualmente. Suas duas produções mais recentes, por sinal, refletem essa inquietação. 

Para a HBO Max, ele dirigiu a série documental “PCC: Poder Secreto”, de 2022, que conta essa história a partir de personagens que participaram direta ou indiretamente da evolução do crime no Brasil, culminando na formação do Primeiro Comando da Capital (PCC), maior facção criminosa do Brasil e da América do Sul. No mesmo ano, o cineasta lançou a comédia “O Pai de Rita”, com Ailton Graça, Jéssica Barbosa e Wilson Rabelo. 

No momento, Joel Zito conta que vem trabalhando com um novo projeto: um documentário sobre a literatura negra.

SERVIÇO:
O quê.
Mostra “Joel Zito Araújo: Uma Década em Vídeo”
Onde e quando. As sessões acontecem no Centro Cultural Vila Santa Rita (r. Ana Rafael dos Santos, 149, Vila Santa Rita), nos dias 24 e 25 de abril, a partir das 17h30; no Cine Santa Tereza (r. Estrela do Sul, 89, Santa Tereza), de 26 a 28 de abril, com aula magna de Joel Zito Araújo em 26 de abril, às 19h, e presença de intérprete de libras; e no Centro Cultural Zilah Sposito (r. Carnaúba, 286, Zilah Sposito), nos dias 2 e 3 de maio.
Quanto. Gratuito. A programação completa está disponível em mostrajoelzitoaraujo.com.br.

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