O lanche chega rápido. A boa qualidade dos ingredientes e o zelo em sua feitura, já reconhecidos antes de o restaurante aderir forçadamente aos serviços de entrega, estão mantidos. E, se o empreendimento convence pela funcionalidade e pelo sabor, há ainda outro detalhe que empresta afeto ao produto: um bilhete, escrito a próprio punho, agradece pela compra e deseja um bom apetite. Mais que cordial, o gesto burla a impessoalidade dos serviços de delivery e, de alguma maneira, possibilita uma interação mais humana e próxima em um período em que vigoram medidas sanitárias de isolamento social.
Essa maneira de acarinhar os clientes é regra entre os estabelecimentos que integram o movimento Velho Mercado Novo, que, agora, passam por uma completa reformulação de sua lógica comercial. Desde o fim de 2018, quando se iniciou a ocupação do prédio de 36 mil metros quadrados, estruturado em cobogós e concreto em uma estilística arquitetônica que se aproxima do brutalismo e de um modernismo tardio, a valorização dos encontros sempre foi uma das premissas fundantes da iniciativa.
Agora, com serviços de entrega próprios ou de aplicativos e presença em redes sociais, os comerciantes vêm se organizando em diversas frentes e testando formatos.
“Estamos negociando com uma dessas empresas de aplicativos, pensamos em fechar um delivery para o Mercado Novo inteiro”, revela Rafael Quick, um dos sócios da cervejaria Viela, que vende as bebidas artesanais, da Cozinha Tupis, uma cozinha descomplicada e paradoxalmente criativa, e do Café Jetibuca, que funcionam no local.
Se houver adesão significativa dos lojistas, a startup vai criar uma aba específica, reunindo os empreendedores do local. Para o empreendedor, faria todo sentido, pois, “mesmo sendo negócios diferentes entre si, eles formam um conjunto, dialogam uns com os outros, evocando a cultura mineira, trazendo algo de contemporâneo com um quê de nostalgia”.
O conselho também estuda a criação de pontos de venda fora do Mercado Novo. “Temos marcas com produtos bem acabados, que poderiam ser oferecidos em outros espaços”, adianta Quick. Os itens poderiam começar a aparecer, por exemplo, nas gôndolas de supermercados.
Outro projeto germinal vem sendo traçado com um coletivo de moradores de um edifício localizado na região Centro-Sul da capital. O objetivo é criar um mecanismo de compra coletiva, facilitando a entrega e reduzindo custos. Se der certo, o formato pode ser levado para outros lugares.
Entre tantas maquinações, Quick volta e meia reflete sobre a reabertura das lojas do lugar. “Estamos pensando cenários para sobreviver agora, mas temos uma expectativa positiva para um mundo pós-pandemia. Acreditamos que as pessoas vão procurar locais com relevância, de pequenos comerciantes e produtores”, especula.
Organização
Antes mesmo da publicação do decreto municipal que determinou a suspensão do comércio na capital mineira, os empreendedores das cerca de 60 lojas, que funcionam no 2º andar do prédio, decidiram fechar suas portas. “Ainda que a força do novo espaço esteja no contato social entre as diferentes tribos que frequentam os corredores do Mercado Novo, em tempos de pandemia foi preciso adaptar-se”, lê-se em um informe do conselho.
“Os primeiros dois meses foram um período emergencial. Existe um coletivo, mas, em primeiro lugar, tem cada negócio pagando contas suas e de seus funcionários. Muitos negócios pequenos, ainda pagando o investimento e construindo o público. Então, cada um foi correndo atrás do seu”, explica Quick. “Na medida em que houve uma certa estabilização, quando a gente foi individualmente encontrando um caminho para continuar, as conversas coletivas voltaram, e novas ideias foram sendo apresentadas, e saídas, construídas”, situa.
O dia das mães, celebrado no segundo domingo de maio, no dia 10, foi um primeiro caso de sucesso da ação cooperativa entre os comerciantes. “Nós notamos que as pessoas queriam levar um pouco do Mercado para a casa delas. Então, pelo menos uma dezena de lojas fizeram kits, que vão para além do imediatismo do delivery… É algo sobre pensar, preparar uma supermesa do café da manhã ou um almoço para celebrar, algo mais afetivo mesmo”, observa Fernanda Delazari, uma das sócias da Cozinha da Vó Anna, em funcionamento desde setembro de 2019 e especializada em massas artesanais, molhos e conservas orgânicas.
Entre as marcas, à medida que os itens de uma loja se esgotavam, surgiu uma espontânea corrente de indicação. Em uma publicação nas redes sociais, a Copa Cozinha, já sem estoques de seus quitutes e de suas cestas de café da manhã, por exemplo, passou a indicar para seus clientes outras lojas do lugar.
Clientes fiéis
“Noto, entre as pessoas que estão comprando com a gente, que o objetivo não é só matar a fome. Tem um pouco de solidariedade e um pouco de saudade também”, sinaliza Fernanda. “Hoje, 90% da minha clientela virtual é composta por pessoas que frequentavam o Mercado Novo e que querem voltar”, garante.
Uma dessas assíduas frequentadoras do local é a bancária Lívia França, 34. Encantada pela diversidade de público e pela qualidade dos pratos, dos lanches e das bebidas, a belo-horizontina adotou a edificação como destino há cerca de um ano. “Peguei aquele início, quando começou a ter mais lojas, e ia quase toda semana”, lembra.
Para apoiar os lojistas, passou a manter o hábito, mesmo que de longe. “Compro quase semanalmente deles e ainda divulgo nas minhas redes sociais. O atendimento e a qualidade da comida continuam excelentes”, assegura ela, que diz que a relação com o lugar é de confiança e de afeto. Estão sempre no seu carrinho de compras virtual, além da Cozinha da Vó Anna e da Cozinha Tupis, o Rei da Estufa, o Ortiz, o Massa Mercado e a Charcutaria Tapera.
“Na quarentena, distante de meus pais, quis oferecer uma boa experiência para eles, algo que trouxesse algum tipo de proximidade, que fosse, de alguma maneira, um acalanto”, conta. No dia das mães, comprou uma cesta de massas vendida no Mercado Novo e, no aniversário do pai, ofereceu um jantar que também veio de lá.
Faturamento cai 70%
De maneira geral, as lojas que funcionam no Mercado Novo, para além das que ocupam o segundo andar, tiveram uma severa perda de faturamento. O superintendente do local, Gabriel Filho, estima que a queda foi de 70% nos ganhos. “É muito difícil, somos um prédio comercial, e muitas das empresas daqui ficaram a zero”, lamenta.
“Estamos ajudando no que é possível, cada um de sua maneira, porque não existe uma fórmula. É tudo muito incerto, e cada um sabe onde o sapato aperta”, comenta, explicando que a empresa dele, que aluga diversas lojas no lugar, optou por oferecer um desconto de 50% no valor dos aluguéis. A iniciativa, diz, foi bem recebida por todos.
“A grande maioria tem tentado acertar e vem pagando, mas alguns não conseguem arcar nem com o valor reduzido a metade”, revela. Filho comenta que alguns comerciantes previam a abertura de seus negócios depois do carnaval: “Veio a pandemia e fechou tudo, deixando essas pessoas, que estavam arriscando, que tinham saído de seus empregos para empreender, sem nada”.
Apesar do cenário desolador, o superintendente avalia que não há quem esteja abandonando o barco. “Cerca de 65% das obras de melhorias estão paradas, mas ainda há aqueles que seguem firmes, deixando tudo pronto para quando a reabertura, ainda sem previsão”, diz, demonstrando como a incerteza é motivo de apreensão: “Não sabemos quando os bares vão voltar a funcionar e não sabemos se, sem eles em atividade, conseguiremos garantir um bom movimento”.
Criatividade
Algumas das lojas do Mercado Novo oferecem serviços que não podem ser distribuídos por meio de delivery e precisaram da criatividade para encontrar soluções. É o caso da Barbearia Olegário, que lançou dois pacotes com vendas antecipadas, que podem ser parceladas em três vezes. O cliente poderá comprar um pacote de serviços com desconto e, quando o comércio for reaberto, poderá ser atendido na loja.
A recém-inaugurada Moon Ótica, por sua vez, usa o sistema “prove em casa”: o cliente seleciona modelos de óculos, recebe as peças, experimenta e devolve aquelas que não lhe servirem. Para acompanhar mais detalhes e novidades sobre as vendas, o perfil no Instagram do Velho Mercado Novo disponibiliza informações diariamente.
História
Em 1962, anunciava-se um empreendimento imobiliário que, à época, correspondia em importância e magnitude à construção da Cidade Administrativa. Um prédio que cumpriria a vocação conferida a BH: cidade fundada sob o signo da modernidade, a capital carecia de um mercado que cumprisse com rigorosos critérios estéticos e sanitários e atendesse a sofisticação desejável ao projeto belo-horizontino. Não era o caso do Mercado Central – que funcionava basicamente como uma feira, em tendas sobre o chão de terra. “O principal mercado municipal da cidade, criado para você vender mais e melhor”, dizia um anúncio de então.
Capricho da história, o Mercado Central, a um quarteirão e meio de distância, ganhou rapidamente uma estrutura mais adequada e, sob a liderança do visionário Olímpio Marteleto (1918-2010), manteve o título de principal mercado de BH. Um revés e tanto para o Mercado Novo, que sofreu com desinteresse generalizado, culminando na falência da construtora responsável pela obra, entregue inacabada.
Da construção do espaço, em 1963, até hoje, o prédio foi sendo ocupado de forma esparsa. No subsolo, restaurantes e lanchonetes populares, que atendem os trabalhadores da região, além de lojas de temperos e condimentos. O primeiro piso concentra, além de um grande parque gráfico, lojas de uniformes e oficina de instrumentos musicais. O segundo possuía poucas lojas e funcionava, basicamente, como estacionamento. O terceiro passou a ser reconhecido pelas festas, como a “Transa” e encontros de blocos de Carnaval. E o quarto é o andar ainda não concluído, que pertence à Prefeitura de BH.
O superintendente do espaço reconhece que, nesse tempo, já teve por lá dias desanimadores, diante de projetos nada promissores como transformar o local em camelódromo ou em shopping.
Essa sensação de um certo abandono mudou desde o final de 2018, quando diversos empreendimentos têm atraído ao local um público igualmente heterogêneo. O velho prédio, que até hoje tem áreas inacabadas, estava bombando e dava firmes passos para entrar na rota turística da capital. Agora, o pandemia do novo coronavírus volta a provocar apreensão sobre a continuidade do projeto de ocupação do segundo piso. Do que depender dos comerciantes, a adversidade será vencida e o movimento permanecerá.