Conceição do Mato Dentro. Viajar por Minas Gerais é se deparar com um sem-fim de receitas anotadas em caderninhos, à mão, em cada casa, mercearia ou bar. É ver histórias e sabores passarem de geração para geração. Algumas vezes, os municípios até “adotam” o prato famoso. Tornam-se, assim, “a cidade do rocambole”, a do “pé de moleque”. Em outras, a tradição fica só entre os moradores. Em Conceição do Mato Dentro, na região Central de Minas Gerais, a realidade está entre esses dois cenários, visto que, aos poucos, o hábito das famílias de preparar pastel de angu está ganhando o espaço público – há pelo menos 150 anos, ele já integra as mesas domésticas.
A tradição do pastel de angu, vale aqui um parêntese, já é patrimônio imaterial, há dez anos, em Itabirito, na mesma região. Mas a receita em Conceição do Mato Dentro é um pouco diferente. Pra começar, a massa não leva outro farináceo: só fubá. O pastel tem massa mais fina – o que, as quitandeiras afiançam, garante recheio abundante e crocância. Apesar de pequenas variações na receita, de família para família, outros modos de fazer são característicos da região, como abrir o pastel manualmente, mesmo entre aquelas que fazem 400 unidades por semana ou as que sequer conseguem contá-los. “Eu faço muito pastel. Não sei te dizer a média”, conta Lélia Maria Generoso Evangelista, 75, uma das quitandeiras mais famosas da cidade.
“A primeira pessoa que fez esse pastel aqui, em Conceição do Mato Dentro, foi minha mãe. Quem ensinou pra ela foi a escrava que a criou”, relata. A mãe, Murtina, cresceu em uma fazenda e, depois, mudou-se para uma casa no centro. “Ela vendia os pastéis no mercado. Ficou viúva aos 38 anos e com 18 filhos, sendo oito adotivos. Minha mãe ensinou o pastel para todos nós, e também fizemos faculdade, de costura, por exemplo”, relembra Lélia.
A receita que ela domina, assim, é clássica, com os típicos recheios queijo (do Serro) e carne. A massa traz outros diferenciais, como a marcante pimenta-malagueta. “Só uso fubá de moinho d’água. Coloco cebolinha, salsa, cebola de cabeça, louro, pimenta e sal com alho (ela tem horta própria)”, revela. “Faço tudo a mão, num fogão industrial. Sovo e abro um a um”, completa. Hoje, Lélia vende seus pastéis apenas no casarão onde mora (na rua Raul Soares, 75, no centro). São entregues congelados (R$ 40 com dez).
Variedade. No último fim de semana, Lélia também fritava seus quitutes em uma barraquinha montada pelo Festival Cultura e Gastronomia Conceição do Mato Dentro. O evento ocorreu pela segunda vez na cidade como parte da plataforma Fartura, que tem como uma das metas valorizar pequenos produtores. A organização vê potencial gastronômico em Conceição do Mato Dentro, mais conhecida pelo ecoturismo.
Ao lado de Lélia, outras duas quitandeiras apresentavam suas receitas: Vânia Alves de Queiroz, a Vaninha, 55, é uma das mais requisitadas por bares e restaurantes da cidade, enquanto Maria de Lourdes, a Lurdinha, 58, bate ponto no mercado municipal.
“Na minha família, era muito comum o fubá, mais do que qualquer outro farináceo. O pastel de angu era feito aos fins de semana, quando a gente reunia a família. Minha mãe aprendeu com a minha bisavó: elas vendiam em barraquinhas na festa do Senhor do Bom Jesus de Matozinhos. Meu avô, pai da minha mãe, também colocava outros ambulantes. Se tinha festa em Ouro Fino, no Itacolomi, alguém ia pra lá”, rememora. Foi natural, portanto, aprender o preparo. “Via minha mãe fazendo o pastel no fogão à lenha e brincava com a massa. Comecei fazendo os babadinhos. Como fui professora a vida toda, fazia o pastel antes mais dentro de casa”, conta ela. O pastel de Lurdinha leva fubá de moinho de pedra, ervas, tempero e urucum. Os recheios variam dos mais clássicos até os de queijo com alho-poró e goiabada com queijo.
Da cozinha de Vaninha também sobram misturas mais contemporâneas, como o queijo com cenoura e o vegano abacaxi com abobrinha. “Hoje, meu pastel está famoso. Vendo para os melhores bares e restaurantes da cidade”, diz ela, sem esconder a satisfação, ainda mais por ter aprendido na tentativa e no erro. “O pastel de angu não é tradição da minha família, e eu sempre tive curiosidade em aprender”, conta. Para Vaninha, fazê-lo é uma arte: “Não pode faltar paciência, porque é demorado e trabalhoso. Esquenta a água, coloca os temperos, põe o fubá e vai mexendo, mexendo, é um angu duro, difícil, alguém tem que segurar a panela”, revela.
Tanto esmero, esforço físico e dedicação fazem Vaninha, Lurdinha e Lélia terem o mesmo desejo para o futuro: esperam que a tradição não se perca e que o quitute ganhe ainda mais reconhecimento. Por que não?
*A repórter viajou a convite do Festival Cultura e Gastronomia Conceição do Mato Dentro