É fácil notar a força da tradição da cachaça no Brasil por meio da cultura popular, especialmente da música. Para ficar apenas nos exemplos mais célebres, a bebida produzida a partir da cana-de-açúcar batizou o sucesso de Carnaval lançado em 1953 por Carmen Costa, que trazia os versos: “Você pensa que cachaça é água/ Cachaça não é água não/ Cachaça vem do alambique/ E água vem do ribeirão”. Ainda mais antiga é “Moda da Pinga”, de 1940, imortalizada no canto de Inezita Barroso.
Sem esquecer as tradições, algo novo vem acontecendo em Minas Gerais, Estado famoso pela produção da bebida alcoólica surgida no Brasil no período colonial. Os alambiques usados para o processo de destilação da cachaça agora têm recebido outra bebida, originária da Holanda, no século XVII, e consagrada na Inglaterra. O gim artesanal, feito à base de cereais aromáticos, em alguns casos tem aproveitado o período de entressafra da produção de cachaça para ocupar seu espaço.
Em Minas, há quem aposte que o gim tem tudo para entrar na parada de sucessos. Formado em publicidade e gastronomia, André Sá Fortes é um dos idealizadores de uma pioneira destilaria de gim. Fundada em 2017 e localizada no bairro Jardim Canadá, em Nova Lima, região metropolitana de BH, ela foi batizada com uma palavra indígena: Yvy, que, em tupi-guarani, significa “o chão que a gente pisa”. Para produzir a bebida, a Yvy utiliza um alambique de cobre, diferente do empregado para se destilar a cachaça e próprio para o gim. O formato dele é uma de suas especificidades. “A circulação do líquido impacta o resultado. Não pode haver fogo direto nas especiarias, elas ficam numa espécie de banho-maria”, explica Sá Fortes.
Ele começou sua produção depois de uma viagem. Mas, antes, fez um curso de destilação no Brasil. “Aprendi muito, mas fiquei limitado ao mundo da cachaça. Sempre gostei da ideia de inovar nos drinks, temos várias bebidas de qualidade, só que, quando você parte para outras que não a cachaça, como vodca, uísque, rum, licor ou o próprio gim, o custo fica alto e inibe o consumo dos clientes, diminuindo nossas possibilidades criativas na coquetelaria”, afirma Sá Fortes.
Em Londres, ele foi até uma feira de gim procurando um sócio que tivesse as mesmas aspirações. O encontro com o inglês Darren Rook definiu tudo. Expert em gim, o mestre destilador atualmente vive em Vancouver, no Canadá, mas continua sendo o responsável pelo desenvolvimento dos produtos da destilaria. Sá Fortes quer, contudo, manter fincadas suas raízes brasileiras. “Vamos falar da história do nosso povo”, afiança. Isso porque o objetivo da marca é colocar na praça uma trilogia de gins artesanais.
O primeiro já foi lançado. Intitulado Mar, o gim foi elaborado com ingredientes que chegaram ao Brasil pelo oceano, por meio dos imigrantes. As especiarias canela e noz-moscada, as raízes angélica, alcaçuz e íris, as frutas cítricas laranja-da-baía e limão-siciliano, além de algas marinhas, se juntaram ao zimbro, planta presente em qualquer receita de gim e responsável por definir a bebida. Em fase de criação, o gim Terra vai contar apenas com ingredientes nativos do Brasil, enquanto o Ar tem por meta representar o contemporâneo, dando uma feição local ao que vem de fora. “Temos tido uma aceitação muito boa, tanto que tivemos propostas de ir para São Paulo, mas preferimos ficar aqui, BH é a nossa casa”, diz.
Projeto
Aproveitando essa maré positiva, Fred Wanderley resolveu investir na receita. Ele pretende lançar em breve seu próprio gim artesanal.
O dono do Très Gastrobar está desenvolvendo o projeto junto à cachaçaria Áurea Custódio, de Ribeirão das Neves, considerada uma das melhores do país. “A vantagem do gim em relação à cachaça é que ele independe da safra, pode ser feito o ano todo”, aponta Wanderley. Com cervejas artesanais no cardápio, a proposta de produção própria já é uma das marcas do estabelecimento. Atualmente, enquanto o gim artesanal não fica pronto, Wanderley desenvolve drinks com a bebida. A clássica gim tônica é feita com especiarias, para ganhar um toque especial. Já o aperol sour leva duas doses de gim, uma de aperol, suco de laranja e clara de ovo. “O gim é muito aromático e usa um dos elementos mais difíceis da cozinha, que é o zimbro, o que o deixa mais suave para a degustação”, diz Wanderley.
Maltado
Em julho deste ano, a Backer, famosa cervejaria, resolveu colocar no mercado seu próprio gim. Como poderia se prever, a bebida aproveitou o fato de estar associada à cerveja. “Nosso gim leva lúpulo e cereais maltados, que são a matéria-prima da cerveja, além, é claro, do zimbro”, conta Rhaner Lebbos, responsável pelo setor de marketing da empresa e filho de Paula Lebbos, diretora geral. Batizado como Lebbos, o gim homenageia o nome da família. “Nosso gim é mais leve que a maioria, você consegue perceber o aroma dos lúpulos”, destaca Rhaner. O processo de destilação também é feito em alambiques de cobre e demora de sete a oito horas. “O gim sempre esteve presente no passado, mas voltou forte nos últimos anos. Vimos essa oportunidade e lançamos a bebida, mas já acreditamos que essa onda tende a se perpetuar”, aposta Rhaner.
Da cachaça ao gim na MPB
Além da marcha carnavalesca lançada por Carmen Costa e do sucesso caipira gravado por Inezita Barroso, as bebidas alcoólicas abasteceram diversas outras composições ao longo da história da MPB. João Nogueira e Paulo César Pinheiro compuseram “Cachaça de Rolha”, em 1987. Adoniran Barbosa e Osvaldo Moles são responsáveis por “Mulher, Patrão e Cachaça”, de 1968. Erasmo Carlos é o autor de “Cachaça Mecânica”, de 1974. O ano de 1995 marcou o estouro de “Pinga Ni Mim”, na voz de Sérgio Reis. Em 1996, o grupo mineiro Pato Fu gravou a música “Pinga”. Isso sem falar no parceiro de Cartola em sucessos como “Alvorada” e “Não Quero Mais Amar a Ninguém”: Carlos Cachaça trazia a bebida no próprio nome artístico.
O gim, eventualmente, também encontrou seu espaço no cancioneiro nacional. A música “Bastidores”, de 1980, foi feita por Chico Buarque para sua irmã Cristina, mas ganhou volúpia na voz de Cauby Peixoto. Logo na primeira estrofe, a bebida aparece: “Tomei um calmante, um excitante/ E um bocado de gim”. Também de Chico em parceria com Edu Lobo é o “Tango de Nancy”, interpretado por Lucinha Lins em 1985: “Eles gozando depressa/ E cheirando a gim”. Um ano antes, em 1984, Cazuza gravou, com o Barão Vermelho, a música “Dolorosa”, parceria com Roberto Frejat: “Fim/ A noite acabou feito gim”, cantava.
Aperol sour do Très Gastrobar
Ingredientes
1 dose de aperol
1 dose de gim
1/2 laranja
Clara de ovo
Açúcar a gosto
Modo de preparo
Bater tudo na coqueteleira com gelo e decorar com casca de laranja.
Serviço
Yvy Destilaria
Avenida Montreal, 597, Jardim Canadá. (31) 3665-9155
Templo Cervejeiro Backer
Rua Santa Rita, 220, Olhos D’Água. (31) 3228-8888
Très Gastrobar
Avenida Prudente de Morais, 513, loja 10, Santo Antônio. (31) 99119-9153