Depois que se aposentou, Elizabeth das Dores, 60, descobriu três novos ingredientes para suas receitas. Com um mix de folhas refogadas retiradas todos os dias ao fundo do quintal, a dona de casa aproveita tudo, até aqueles matinhos que a gente vê no meio do jardim e não dá importância. “Eu achava que era veneno ou praga. Nunca poderia imaginar que era possível cozinhar ou colocar nas refeições. Depois que descobri sua utilidade, acabou! Uso como recheio de empada, salada e até misturo no meio da carne moída. Meus netos nem percebem”, brinca a aposentada, que descobriu o potencial das folhas depois de participar do Festival Igarapé Bem Temperado.
As folhas a que Elizabeth se refere são o cansanção, a beldroega e a bertalha. Parte das Pancs – Plantas Alimentícias Não Convencionais, que têm sido redescobertas por chefs e curiosos de todo o país – foi até prova no último Masterchef Brasil, exibido pela Rede Bandeirantes. Estima-se que só em Minas Gerais possam ser encontrados 3.000 tipos de plantas comestíveis.
Em todo o país, segundo o pesquisador Valdely Kinupp, existem, aproximadamente, 10 mil espécies. “Muitas pessoas podem achar que o Amazonas é a região mais rica em flora, mas Minas Gerais é o Estado mais rico em diversidade. Serralha, ora-pro-nóbis, taioba, tudo isso é panc. O termo é muito amplo, tudo que não é convencional em uma determinada região e pode ser consumido entra na categoria. Podem ser sementes, raízes, folhas e até frutos”, explica o biólogo.
Gourmet
Hoje, as Pancs têm sido estrelas nos menus de alguns dos principais restaurantes do Estado. Para o chef Ivo Faria, do Vecchio Sogno, essas folhas e plantas fazem parte de uma redescoberta de ingredientes na gastronomia atual que ficaram esquecidos nas roças mineiras, como o ora-pro-nóbis e a maria-gondó, que, tempos atrás, ninguém nunca tinha ouvido falar. “Umbigo de bananeira, serralha e vários outros tipos de folhas são ótimas opções para guarnições, molho de massa e recheios. Dá personalidade para o prato”, explica. O chef faz até codorna recheada sobre molho de canjiquinha com maria-gondó “O sabor lembra o jambu. Pode misturar com polenta, risoto e até fazer um arroz tipicamente brasileiro. Queijos aceitam muito bem a combinação”, sugere.
O prato faz tanto sucesso que Faria costuma congelar algumas plantas e levar para a Europa. “As pessoas gostam muito e admiram a forma como esses vegetais podem dar outra textura ao prato. Sempre que posso, fermento, congelo e faço receitas em minhas viagens”, conta.
O chefe Fred Trindade, do restaurante Trindade, tem um ingrediente bem inusitado entre as Pancs. Trata-se do picles de bálsamo, um tipo de cacto ácido e medicinal para o estômago. “Ele é um pouco azedo, então usamos em pratos com frutos do mar. A principal receita em que o usamos é no arroz com polvo, mas ele pode ser colocado no meio da carne de porco para quebrar a acidez”, explica. Todas as receitas do cardápio, segundo o chef, fazem parte de uma busca por ingredientes mais puros: “Acredito que minha missão enquanto cozinheiro, é transmitir emoção e sensibilidade, contando um pouco da história de cada alimento”.
Outro especialista nos verdes é o chef Jaime Solares, proprietário da Borracharia Gastrobar. Semanalmente, ele realiza um trabalho voluntário com detentos, em Nova Lima. Além de ensinar noções de culinária, Solares traz de lá todas as hortaliças que usa. “A dica que eu dou é: cultive, compre e experimente. É muito gostoso cozinhar o que vem da terra. É acessível para todo mundo. Dá para usar até peixinho-da-horta em pratos de comidas japonesas. Parece um lambari e dá uma ‘crocância’”, afirma.
Para quem aprecia a sabedoria da cultura popular, essas receitas têm um gostinho especial, pois resgatam justamente parte da memória da gastronomia. Essa é a convicção do chefe Leandro Pimenta, do Café com Letras. “Há muito tempo a gastronomia ficou refém da internacionalização. O legal era usar o que vinha de fora. Agora temos que trazer à mesa produtos que são parte da nossa história e por algum motivo ficaram esquecidos”, afirma.
Serviço:
Borracharia Gastrobar (av. Afonso Pena, 4.321, São Lucas, 2127-4321)
Café com Letras
- CCBB-BH (r. Antônio de Albuquerque, 781, Savassi, 3225-9973)
Restaurante Trindade (r. Alvarenga Peixoto, 388, Lourdes, 2512-4479)
Vecchio Sogno (r. Martim de Carvalho, 75, Santo Agostinho, 3292-5251)
Tradição e exotismo
Polvo com picles de bálsamo, do Trindade
Desconhecido por quase 80% da população, o termo Panc foi criado pelo pesquisador Valdely Kinupp em 2008, quando defendeu sua tese de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 2014, ao lado do engenheiro agrônomo Harri Lorenzi, Valdely publicou o livro “Plantas Alimentícias Não Convencionais (Panc) no Brasil”, que reúne 351 espécies de vários Estados e tornou-se referência entre pesquisadores e chefs, já que, além de descrever as características das plantas, indica seu uso culinário. “No momento, estou apaixonado por tempurá de carne de boi feito com talos de vitória-régia. Era muito comum esses vegetais estarem nos pratos que nossas avós comiam. É preciso desmitificar que as Pancs são alimentos de pessoas menos favorecidas e da roça. Essas folhas podem ser um novo conceito de sustentabilidade, até porque geram emprego e renda”, destaca.
Kinupp frisa ainda que as Pancs ajudam a quebrar a monotonia do que levamos para a mesa, considerando que atualmente nos alimentamos somente com 150 plantas diferentes, enquanto nossos ancestrais consumiam uma média de 7.000 a 10 mil espécies ao longo da vida. “Comemos muito da biodiversidade de outros países e continentes. Somos xenófilos à mesa”, destaca.
Benefícios
Assim como Valdely, a nutricionista Neide Rigo, dona do blog Come-se há dez anos no ar, acredita que uma das principais vantagens das Pancs é que, como são rústicas e cultivadas em pouca escala, organicamente, elas não têm agrotóxicos. “Os produtos que vemos nos supermercados e mercados são cheios de venenos químicos. As Pancs, nesse sentido, são mais uma opção nutritiva para nosso consumo. Essas espécies nem deveriam ter esse rótulo e deveriam ser vistas como algo convencional”, destaca a pesquisadora que comanda o passeio Pancnacity, em São Paulo, em que caminha com um grupo colhendo plantas desconhecidas.
Rigo afirma ainda que essas plantas ajudam a reduzir a carência de alguns nutrientes importantes, como o zinco e o ferro. “A ora-pro-nóbis, por exemplo, tem um valor proteico maior que o feijão, além de ser rica em vitamina A”, explica.
Cuidados
Embora as Pancs devam ser mais bem aproveitadas, o consumo delas deve ser feito com cautela. Algumas espécies podem estar contaminadas e oferecer riscos à saúde. “Não existe um truque para reconhecê-las”, destaca Valdely. A dica do biólogo, no entanto, é pesquisar. “Na dúvida, o ideal é fotografar e levar para algum especialista, algum agrônomo ou um herbário. Hoje em dia, temos muitos livros e filmes com essa temática. O importante é se familiarizar”, aconselha.
RECEITA
Lasanha de peixinho-da-horta à bolonhesa
Ingredientes:
2 ovos
2 colheres de sopa de creme de leite fresco
30 a 40 folhas de peixinho da horta
1 concha de molho bolonhesa para cada camada
12 fatias de presunto fatiado
12 fatias de muçarela fatiada
Pitada noz-moscada
Pitada sal
Pimenta do reino
Modo de preparo:
Bata os ovos com o creme de leite fresco numa vasilha e tempere com sal, pimenta e noz-moscada. Em seguida, monte a lasanha como uma lasanha comum, usando o peixinho-da-horta passado na mistura de ovo como se fosse a massa, ou seja, alternando camadas de molho, presunto, muçarela e peixinho. Finalize com muçarela e leve ao forno até gratinar. Retire do forno e deixe descansar uns 20 minutos antes de servir.
Porção para quatro pessoas
JAIME SOLARES, CHEF E PROPRIETÁRIO DO GASTROBAR