Sob olhar atento do pequeno Alessandro Luiz Lourenço, 10, chefs mineiros realizavam apresentações culinárias em uma cozinha estruturada no coração de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha. Sempre ocupando o primeiro lugar e, por vezes, fazendo papel de auxiliar, era notável o apreço do garoto pela gastronomia e gratificante, para os profissionais da cozinha, a surpresa por ele expressada diante da descoberta de tesouros locais – que a criança, e outras dezenas de participantes agora aprendiam que era possível encontrar nos quintais da cidade histórica.
A cena, presenciada pela reportagem, se repetiu ao longo das tardes do penúltimo fim de semana de setembro, quando ocorreu o 10º Diamantina Gourmet, e ilustra um dos efeitos imediatos que a ação de uma espécie de “frente ampla pela gastronomia mineira” promove: o despertar de interesse para o fazer culinário. Prova disso: foi na sexta edição do evento diamantinense que André Luiz Lourenço, 17, foi arrebatado pelas alquimias possíveis enquanto comandava o fogão. Agora, o irmão mais novo o acompanha. “Somos o ‘MasterChef’ e o ‘MasterChef Junior’ da família”, brinca o pequeno, em referência ao reality show.
“Além de capacitar tecnicamente para que possam explorar ingredientes de seus quintais, mostramos como são valiosos esses produtos locais”, examina o chef Edson Puiati, um dos entusiastas da iniciativa, que busca consolidar a vocação de cidades do Estado para a culinária, potencializando circuitos turísticos e valorizando produtores locais.
Puiati reconhece que há, mais recentemente, um maior interesse pela cozinha entre os mais jovens – que, a exemplo de André e Alessandro, têm comparecido em peso a eventos do gênero. “É algo que vimos no Festival do Queijo da Canastra (no fim de julho, em São Roque de Minas, na região Oeste do Estado), é algo que está muito forte aqui (em Diamantina) e que é muito bonito”, comenta ele. “Somos um povo que tem orgulho dos caderninhos de receitas, cujo segredos da cozinha são passados de geração para geração. E isso está sendo mantido”, diz.
Identidade
Para o chef, a cultura alimentar é cercada de fatores que se relacionam e, juntos, compõem uma identidade local. “Minas é um Estado grande, com diferentes biomas, que nos trazem ingredientes típicos. A isso se somam as várias influências dos povos que aqui viveram, que por aqui passaram. Mesmo os utensílios que vamos usar, as panelas, que são de pedra em um lugar, de cobre em outro, estão ligados a essa tradição culinária”, aponta. O desafio é perceber, essas variações e explorar suas potencialidades.
Assim, alcançar sucesso nessa empreitada é tarefa que exige um olhar afetivo para a cozinha. É o que analisa a chef Fernanda Fonseca, uma das convidadas para o 10º Diamantina Gourmet. Na avaliação dela, é importante trabalhar com “o resgate de receitas e ingredientes que nos trazem memórias e lembranças por meio do paladar”. Na receita de um bolinho que apresentou no evento, por exemplo, ela recorreu a opções de queijos locais e a uma planta do Cerrado, a assa-peixe, usada por povos tradicionais para a curar problemas respiratórios.
Já a chef Liliane Fernandes optou por um prato com tilápia, purê de banana da terra e uma farofa à base de quitandas e limão-cravo. “Minas não tem mar, mas tem muitos rios. O peixe sempre esteve presente em nossa mesa”, justifica. Já a combinação dos dois últimos ingredientes é um brinde ao cerrado. “Tanto a fruta quanto os biscoitos estão muito ligados a essa região – um deles ao bioma, e o outro, à história e à cultura daqui”, diz.
“Minas Gerais é um Estado gastronômico, a culinária está no nosso dia a dia e representa nossa cultura”, diz Fernanda, ponderando que ainda há muito trabalho a ser feito. “Nos nossos quintais encontramos ingredientes maravilhosos que muitas vezes descartamos por não saber valorizá-los”, assevera.
Fernanda defende, em consonância com seus colegas de ofício, que os novos “diamantes a serem lapidados” nas Minas Gerais são frutos, raízes e folhas fartos nos quintais do Estado. Algo que ela buscou reforçar com antigos moradores da cidade histórica e que defendeu, com ênfase, diante dos pequenos pupilos. Para Alessandro, ela pediu que prometesse combinar o já visível amor pela cozinha com o orgulho pelos modos de fazer e pelos preciosos itens da redondeza.
Instrumentos da preservação
Na trincheira pela valorização da cultura alimentar mineira agrupam-se chefs, entidades ligadas à culinária, como o Instituto Eduardo Frieiro, organizações privadas sem fins lucrativos, como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-MG) e equipamentos governamentais, como a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater) – além, claro, de um sem-número de empreendedores que se integram ao coletivo nessa cadeia.
Organizando eventos públicos voltados à gastronomia, o grupo formado por pessoas dessas instituição não tem medo de pegar a estrada e experimentar novos sabores, sempre calcado no que aquela região tem a oferecer. Exemplo foi a recente viagem da chef Liliane Ferreira a Milho Verde, na região do Alto Jequitinhonha. Por lá, pela primeira vez, acontecia o Festival Sabores do Queijo, idealizado pela agente cultural Suellen Alice. De olho no potencial do turismo gastronômico para a região, a empreendedora, que é gaúcha, congregou a comunidade local em torno do evento.
“Todos os estabelecimentos que participaram tiveram capacitação, tiveram consultoria com o chef Eduardo Avelar. Pessoas da comunidade que trabalham com gastronomia também puderam participar. É algo que fica para a posteridade”, comenta, reforçando o compromisso desses festivais de deixar legados.
Firme no propósito, no fim de semana seguinte Suellen participava da Festa do Queijo de Serro, que está em sua 33ª edição. A longevidade do evento, que acontece em Serro, também no Jequitinhonha mineiro, e o surgimento de outros festivais, como o de Milho Verde, sinalizam para o bem-sucedido empenho desse agrupamento de chefs, entidades e empreendedores, que buscam potencializar a vocação culinária e fomentar o circuito gastronômico de cidades mineiras.
“Realizar eventos que levam a gastronomia para as ruas – e somos pioneiros no Brasil nesse tipo de ação – é um modo de defender e preservar a nossa cultura alimentar”, observa o chef Edson Puiati, representante do Instituto Eduardo Frieiro. “Quando a gente pensa em tornar um lugar um polo gastronômico, observamos se há capacidade turística – somando história, cultura, atrações diversas, estrutura, um povo acolhedor”, explica ele.
*O repórter viajou a convite do festival Diamantina Gourmet