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Do Império ao século XXI, o transporte é o catalisador dos protestos no Brasil

Sobrepreço de um serviço extremamente essencial é propulsor de levantes populares no Brasil

Miguel Schincariol/AFP

Em 1880, o governo imperial de Dom Pedro II decidiu reforçar seus cofres com a implantação de uma taxa extra sobre o transporte público. Quem andasse de bonde pagaria, além da tarifa, um vintém, que era a menor unidade monetária da época. Foi suficiente para arrastar milhares de pessoas às ruas do Rio de Janeiro, depredando os veículos. Conhecido como a Revolta do Vintém, o episódio mostra que, desde o Brasil Império, o transporte tem sido o grande catalisador da indignação popular. Em capítulos mais recentes da nossa história, nos últimos cinco anos, as duas grandes manifestações que tiraram o país da inércia tiveram origem nessas engrenagens. Em 2013, o primeiro levante popular desde as Diretas Já, nos anos 80, começou por causa dos R$ 0,20 de reajuste da passagem de ônibus em São Paulo. Em 2018, toda a economia do país parou junto com os caminhoneiros, em uma greve que terminou com a redução de R$ 0,46 no preço do litro de diesel.  Com pesquisa histórica, reportagens, fotos e minidocumentários,  o  especial A revolta dos centavos  mostra que, por trás desses movimentos, as causas vão muito além desses R$ 0,66.

 

Do vintém aos centavos, milhares de pessoas se unem em uma batalha contra reajustes. Foram anos de custo de vida arrochante, em que o preço das passagens de ônibus subiu acima da inflação. A gota d’água dos R$ 0,20 em São Paulo, em 2013, fez entornar o balde do país todo. O mesmo aconteceu com o diesel. O combustível subiu tanto, e tão acima da inflação, que caminhoneiros estavam pagando para trabalhar, e grandes transportadoras perdiam suas margens de lucro.

 

Para levar uma carga de Salvador a Belo Horizonte – cerca de 1.000 km –, o caminhoneiro Charles Sampaio Ferreira, 42, recebeu R$ 3.000 pelo frete, mas afirma ter gastado R$ 2.950 para reabastecer o tanque. “A profissão está inviável”, afirmou Ferreira em entrevista concedida no fim da greve.

 

O pesquisador de mobilidade urbana e professor de arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Roberto Andrés, explica que tanto os protestos de junho de 2013 quanto a greve dos caminhoneiros, neste ano, têm como raiz o sobrepreço de um serviço extremamente essencial, e são exatamente os aumentos do ônibus e do combustível que interligam essas revoltas. “Sem deslocamento, o abastecimento é comprometido, e, quando as pessoas não conseguem se deslocar, não conseguem acessar serviços como educação e saúde”, diz.

 

Impacto imediato

De acordo com o economista e integrante do movimento Tarifa Zero André Veloso, desde que as cidades começaram a ganhar importância, no século XIX, qualquer reajuste no serviço de transporte é capaz de fazer explodir uma onda de protestos. “O transporte é o que liga as pessoas à urbe, o que faz elas entenderem tanto o direito delas como esse cotidiano de trabalho, de reprodução da vida, de produção de alguma coisa para outras pessoas, e não para elas próprias. Quando a tarifa aumenta, é um impacto nessa percepção do que elas estão fazendo com a própria vida. Quando você tem um aumento, espontaneamente as pessoas veem que as barreiras que elas têm para acessar o transporte se ampliam muito mais”, ressalta Veloso, autor da dissertação de mestrado e livro “O Ônibus, a Cidade e a Luta”.

 

Segundo a antropóloga, cientista social e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, Rosana Pinheiro-Machado, os dois movimentos escancaram a dependência do transporte terrestre. “Nas grandes cidades, o país é dependente de ônibus e carro. Na produção, é dependente dos caminhões. Grande parte da população vive em ônibus que atrasam, são assaltados e expressam toda a precariedade da vida, em ambos os aspectos: seja na precarização do trabalhador, do caminhoneiro, seja na pessoa comum que fica uma hora no ponto quebrado, vai pegar ônibus lotado, de pé, não vai chegar no horário”, analisa.

 

Na avaliação dela, o transporte é indicador da qualidade de vida. “Isso é um símbolo da vida tanto dos caminhoneiros quanto das outras pessoas – além de trabalhar, não consegue se locomover de uma maneira digna”, finaliza a cientista social.

Essa briga é antiga
Transporte coletivo é estopim de revoltas desde o século XIX
Fontes: acervos de jornais dos períodos, memorialatina.net, livro "O Ônibus, a Cidade e a Luta", de André Veloso

O que nos leva para a rua

No Brasil, a fagulha tem sido o transporte; em outros países, a luta é por questões menos imediatistas

Atos de resistência e levantes populares existem desde sempre. Reforçados pela desigualdade social, explodem em todo o mundo, motivados por questões trabalhistas, sanitárias, religiosas ou de direitos humanos. Mas no Brasil, desigual por natureza, o que incendeia as multidões é exatamente o que as move: o transporte, seja ele privado ou coletivo, o grande “órgão de choque” que é o primeiro a sentir quando o sistema está doente. Em ônibus e metrô, todo reajuste tarifário aumenta a exclusão social. Já no transporte de cargas, todo aumento de custo significa, na ponta da cadeia, comida chegando mais cara à mesa das famílias.

 

Em nações mais amadurecidas, questões maiores e de repercussões de longo prazo – como reformas trabalhistas e previdenciárias e filiações a acordos e comunidades internacionais – levam o povo à revolta e, muitas vezes, ao quebra-quebra seguido de confronto com forças policiais. No Brasil, a insatisfação com serviços ruins tem sido o catalisador. Quando esse serviço fica ainda mais caro, é jogar gasolina no fogo. “A vida das pessoas já é bastante sacrificada, muitos dispendem boa parte do seu tempo no transporte público, pegam dois ou três ônibus, chegam cansados. E ainda precisam pagar caro”, considera Cláudio Frischtak, presidente da Inter B Consultoria Internacional de Negócios.

 

Quando os caminhoneiros decidiram parar, em maio de 2018, o que se viu foi uma verdadeira revolução do empoderamento de uma categoria geralmente marginalizada. “Houve uma sensação de que o país parava sem eles, e começaram a se entender como sujeitos políticos capazes de mudar a realidade brasileira”, analisa a antropóloga, cientista social e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) no Rio Grande do Sul, Rosana Pinheiro-Machado. “Há uma grande vontade de que o Brasil passe a ser um país com serviços e bens públicos mais decentes”, resume.

 

Paradoxos

O Brasil vive hoje uma modernidade incompleta, em que a internet das coisas convive com caminhões fumacentos em estradas esburacadas, e celulares com realidade virtual estão nas mãos de passageiros espremidos em ônibus barulhentos, abafados, fedorentos e lotados. Por isso, qualquer mudança que piore essas condições já precárias despertam reações tão fortes e imediatas.

 

O rodoviarismo como política econômica nacional leva o brasileiro a reagir apenas quando as condições do transporte e sua relação com o cotidiano das cidades são afetadas. “Em sua maioria explosões inesperadas e incontroláveis de indignação, essas revoltas expressam reações a contradições que se repõem continuamente na vida urbana e que informam a própria estrutura de relações sociais da população”, escreve André Veloso no livro “O Ônibus, a Cidade e a Luta”.

 

Por isso, o povo se mantém “pacífico, simpático, animado, receptivo” (e quaisquer outros adjetivos com os quais estrangeiros nos rotulam) diante da corrupção e de governos que pedem sacrifícios ao trabalhador enquanto aumentam seus salários.

 

Não há por aqui um Movimento dos Cidadãos Indignados, como na Grécia. Até os slogans de protestos são relacionados ao consumo, como “O gigante acordou”, extraído da campanha do uísque Johnnie Walker, e o “Vem pra rua”, retirado de anúncios da Fiat. Pode ser sinal não de alienação política, mas de imaturidade: muitos dos lemas do Maio de 1968 na França também vieram do mundo publicitário. Por lá, neste século XXI, a população já está madura o bastante para brigar por pautas mais amplas, como direitos trabalhistas. Analisando-se esse passado, pode-se chegar a um sinal de esperança de que o Brasil, um dia, também vai aprender.

 

O que motiva os protestos no mundo

  • Argentina

    Foto: Eitan ABRAMOVICH/AFP - 25.5.2018

    19 de dezembro de 2017 O Congresso argentino aprovou uma polêmica propsota de reforma da Previdência para tentar reduzir o déficit fiscal, após violentos confrontos entre manifestantes e polícia. A lei eleva a idade de aposentadria e corrige valores das pensões. Pelo menos 162 pessocas ficaram feridas. As cenas de repressão nas ruas não eram vistas desde a revolta que derrubou o governo em 2001.

  • Brasil

    Foto: GUSTAVO BAXTER

    19 de dezembro de 2017 Em 2013, as Jornadas de Junho foram motivadas pelo aumeto de 20 centavos na tarifa de ônibus, mas transbordou para diversas outras reivindicações antirracistas, feministas, LGBT, meio ambiente, além de questões politicas como o Fora Lacerda.

  • Espanha

    Foto: JOSE JORDAN / AFP - 19.2.2012

    15 de maio de 2011. Começaram em 58 cidades os protestos chamados de "Indignados". Espontâneos e inicialmente organizados pelas redes sociais, reivindicavam mudanças na política e no modelo econômico. Heterogêneo, o grupo tem em comum a aversão à classe política.

    19 de fevereiro de 2012. Milhares de pessoas participam de protesto contra uma reforma trabalhista que retira direitos e contra cortes de gastos que afetariam benefícios sociais.

  • Estados Unidos

    Foto: Andrew CABALLERO-REYNOLDS/AFP - 24.3.2018

    24 de março de 2018. Aterrorizada pelos sucessivos massacres em escolas, parte da população dos Estados Unidos vai às ruas na "Marcha pelas nossas vidas", movimento que pede leis mais rígidas no controle de armas no país. Houve manifestações em todos os Estados. A estimativa é que cerca de 1 milhão de pessoas tenham participado das manifestações.

  • França

    Foto: F. Blanc / Force Ouvriere - 17.5.2016

    De 2016 a 2018. País enfrenta sucessão de manifestações contra uma reforma trabalhista considerada muito favorável às empresas e prejudicial ao empregado.

  • Grécia

    Foto: Aris Messinis/AFP - 3.11.2016

    8 de maio de 2016. Endividada e sem conseguir mais crédito, a Grécia resolve cortar gastos diminuindo os benefícios pagos a aposentados e aumentando a idade mínima para se aposentar. No dia da votação do pacote de medidas pelo Parlamento, greves e protestos que vinham acontecendo há meses se intensificaram e levaram mais de 15 mil pessoas às ruas de Atenas. Manifestantes atiraram bombas contra a polícia, que revidou com gás.

  • inglaterra

    Foto: Niklas HALLE'N/AFP - 2.7.2016

    2 de julho de 2016. Milhares de manifestantes se reuniram no centro de Londres numa marcha contra a aprovação da saída da União Europeia. O resultado, já definido, mergulhou o Reino Unido em caos político. Cerca de 60% da população londrina havia rejeitado o Brexit. Mesmo derrotados pelo Parlamento, ainda expressavam sua indignação nas ruas.

  • Primavera Árabe

    Foto: FETHI BELAID / AFP - 17.12.2011

    Tunísia, Líbia, Catar, Síria, Jordânia, Argélia, Iêmen, Omã, Djibouti, Somália, Sudão, Iraque, Bahrein, Kuwait, Marrocos, Mauritânia, Líbano, Arábia Saudita e Egito

    2010 a 2012 Em 18 de dezembro de 2010, o jovem tunisiano Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo como forma de protesto contra as condições de vida no país. O ato desesperado despertou outros protestos e acabou culminando no que, mais tarde, veio a ser chamado de Primavera Árabe. Foi uma onda revolucionária de manifestações no Oriente Médio e no Norte da África, em que movimentos pró-democracia surgiram em decorrência de problemas demográficos, alto índice de desemprego, duras condições de vida, governos corruptos e autoritários. Alguns governos foram derrubados, concessões econômicas feitas e presos políticos, liberados.

O que motiva os protestos no mundo

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Data de Publicação: 09/07/2018