Alexsander foi visto pela última vez aos 14 anos e levava o nome da mãe, Lúcia, raspado na cabeça. Emily brincava com Pretinha, sua boneca favorita, no portão de casa, quando desapareceu. Cecília, em viagem com a família, ainda não tinha 2 anos quando correu atrás de uma bolinha verde e nunca mais foi vista.Lucas foi a uma festa no interior e depois voltaria para ver a mãe, que ainda espera o filho chegar. Os casos citados são de crianças e adolescentes que desapareceram no Estado entre 1976 e 2016 e nunca foram encontrados.
Só nos últimos três anos, mais de 7 mil mineiros entre 0 e 17 anos sumiram sem deixar vestígios. Este é o único número palpável disponibilizado pela Polícia Civil, já que o Registro de Eventos da Defesa Social (REDS), implantado em 2013, limita os casos anteriores aos papéis, que se acumulam no cartório da Divisão Especializada de Referência a Pessoa Desaparecida, em Belo Horizonte, a única delegacia específica para investigar esse tipo de crime no Estado.
Se “a saudade é o revés do parto”, a angústia de ter um filho desaparecido é ainda pior que “arrumar o quarto do filho que já morreu”. Impossível encarar com naturalidade a angústia de uma mãe que preferia ver o filho morto a passar uma vida sem saber o seu paradeiro.
Mas se na morte a dor é certa, na ausência, é a incerteza que mata. “Antes ela tivesse morrido porque, assim, como é, fica essa coisa no meio do caminho”, conta Maria Francisca de São José Faria, 78 anos. O marido, Alberto Geraldo, 72, ao lado da esposa debilitada, se mantém o tempo todo calado. Exceto ao final da entrevista quando pergunta à reportagem se este jornal circularia também no Espírito Santo.
Foi lá que eles viram, pela última vez, a filha Cecília, uma menininha arredia e escandalosa, “que não ia com ninguém”. Em 1976, ela tinha 1 anos e 9 meses, e a família, de Betim, foi para Guarapari ajudar a mãe a se recuperar de uma cirurgia em um acampamento fechado na praia.
As crianças estavam o tempo todo sob supervisão dos adultos, que conversavam, jogavam cartas, contemplavam o mar. Afobadas diante de um mundaréu de areia para correr, brincavam despreocupadas. A última notícia que se tem de Cecília naquele dia 2 de fevereiro, foi quando ela correu para pegar uma bolinha verde que o irmão jogou perto da porta da cozinha.Depois, ela não foi mais vista.
Maria Francisca e Alberto acreditam que a criança pode ter sido pega por algum casal que não podia ter filhos e, sendo assim, pensam que ela pode ter sido bem cuidada durante todo esse tempo.
Na época, quando o país passava pelo regime militar, fazer qualquer tipo de pressão para que a polícia intensificasse a investigação, fechando as fronteiras entre municípios e Estados, por exemplo, poderia soar como subversão ou desacato.
E assim o caso de Cecília atravessou uma ditadura, viu nascer a democracia, passou pelas mudança de comportamento e cultura entre as décadas de 70, 80, 90 e anos 2000, e segue em aberto. Como uma lacuna no coração de Alberto e Maria Francisca.
“Eu não gosto nem de lembrar desse dia. Se Deus tivesse levado ela eu pelo menos poderia ter enterrado. Mas eu nunca perdi a esperança, Deus me livre. Eu me apeguei foi Nele e em Nossa Senhora de Aparecida pra sobreviver, porque ela é mãe de Jesus, né? Uma mãe entende a outra”, conta Maria Francisca.
Débora, 46, irmã de Cecília, conta que a caçula nunca foi dada como morta pela família. “A gente pensa nela estando viva. E eu não sei como eles pegaram essa menina porque ela era muito arredia, não gostava de ninguém pegando ela, eu lembro dela gritando o tempo todo e brincando com a gente”, diz.
O último apelo da família vem da voz fraca e rouca de Maria Francisca, e é também a esperança na qual se apegam: “Se você é adotada, vai atrás da sua origem, pergunte para os seus pais de onde veio, como eles te pegaram, busque fotos de crianças”. Assim, quem sabe, Cecília, já com seus 42 anos, descubra que antes da família que conhece, tenha tido o colo de outra família que vai a amar até o último minuto, e que se alimenta de todas as lembranças construídas naqueles primeiros 1 ano e 9 meses de vida. (Com Flávia Jardim)
O filho de Carla Kymaria Oliveira, 49, saiu no dia 12 de junho de 2007 em Contagem, então com 7 anos, para comprar um presente para o pai. Ele nunca mais voltou. João Vítor tinha uma relação muito próxima e carinhosa com os pais, era o caçula entre os cinco filhos, e o seu desaparecimento causou danos irreversíveis à família.
"No dia 20 de junho ele ia fazer 8 anos e nem pudemos comemorar. Eu entrei em depressão por anos, comecei a tomar remédios, agora que estou conseguindo reagir. Dei todas as coisas dele para um familiar porque não aguentava ficar olhando. Só sobrou um retrato que eu mandei fazer e uma camisa", conta Carla.
Hoje, Carla e o marido, ambos desempregados, moram em Esmeraldas e continuam "convivendo" com o filho nas lembranças e nos sonhos. "Nos meus sonhos, antes, ele sempre estava chorando muito. Hoje ele já não chora mais, parece que está bem, eu sinto isso, eu vejo ele direitinho quando eu durmo", diz a mãe. A família acredita que João Vítor tenha sido sequestrado por alguém que tinha acabado de perder um filho e não descartam a possibilidade de ele estar fora do país, o que não mina as esperanças de reencontrá-lo.
"No dia que ele sumiu, quando procurei a polícia, fui informada de que precisava esperar 24 horas para fazer a ocorrência. Mas a outra viatura que abordei disse que não tinha que esperar nada, e consegui fazer o registro. Mas sabe o que eu acho? Que se a gente tivesse dinheiro, ele já teria sido encontrado", lamenta.
Para sair da depressão, Carla se apega a Deus e à horta: "Estou começando a fazer outras coisas, a cuidar das minhas plantas, da minha horta. Tem uns dias que comecei a parar de tomar os remédios, não posso viver a vida toda assim. Mas eu sempre converso com Deus e peço pra ele não sair de perto do João Vítor. Hoje ele já está com 17 anos e eu queria muito ver como está o meu menino, eu nunca vou perder essa fé".
Alexsander Vinícius de Souza Apolinário, citado no início da reportagem, foi visto pela última vez no dia 13 de agosto de 2010 aos 14 anos, em Belo Horizonte. Ele levava o nome da mãe, Lúcia, raspado no corte de cabelo.
Um dos casos mais emblemáticos do Estado é o desaparecimento de Emily Ferrari, aos 9 anos, em Rio Pardo de Minas, na região Norte. No dia 4 de maio de 2013, a criança brincava na porta de casa com uma boneca negra, a sua favorita, chamada Pretinha.
Os quatro anos de ausência não minimizaram a falta que faz a menina. Tampouco serviram para anestesiar a dor, porque cada dia que passa é um dia a mais sem saber como Emily, que hoje tem 13 anos, está. Se come todos os os nutrientes de que precisa na hora do almoço, se ela se agasalha quando sente frio, se mantém as boas notas da escola, se recebe na testa um beijo de boa noite antes de dormir.
“A gente pensa nela todo minuto, mas tem hora que a lembrança vem mais forte. A gente fica pensando no que ela faria se tivesse aqui, como ela seria. É como se a vida estivesse parada desde aquele dia em 2013. Trabalhar a gente trabalha para sobreviver, a gente tenta viver normalmente, mas é impossível. Não tem nada igual, a nossa vida só vai voltar quando ela voltar”, conta o pai Leandro Campos, 32.
A angústia da família foi potencializada nos últimos anos pela quantidade de trotes que receberam e pelas várias pessoas, inclusive próximas da família, que culparam os pais pelo desaparecimento da menina. “É um trauma. Precisamos de tratamento psicológico por anos. Até mesmo quando tratam dela como se ela tivesse morrido é algo que machuca. Porque pra mim a minha filha está viva e nada tira isso da minha cabeça. Até o fim da vida eu vou esperar por ela se for preciso”, afirma.
Francisca Soares Martins, 48 anos, tem sete filhos, entre eles os gêmeos Lucas e Luana, de 17. Ela trabalha desde os 14 anos em propriedades da zona rural de Minas Nova, comunidade próxima a Capelinha, no Vale do Jequitinhonha.
Acorda de manhã, vai para a fazenda tratar das lavouras de café dos patrões, e retorna para a casa no fim da tarde. Lucas mora em Capelinha para estudar, o que a mãe dele nunca pode fazer. Sem saber ler e escrever, a interação de Francisca com a polícia da cidade mais próxima para saber das investigações sobre o filho que saiu no dia 10 de dezembro e nunca mais voltou sempre é falha.
Sem apoio do pai dos filhos, que mora em Araxá e “nunca se preocupou em saber se eles estão bem e se estão comendo”, Francisca divide os dias entre o trabalho e a família. E nos últimos meses, em conseguir um sono.
“Não consigo dormir mais, trabalhar eu trabalho porque não tem jeito, mas meu coração fica doendo, eu trabalho sentida. Eu já perdi um filho acidentado, mas esse eu sei que está enterrado. Aí a gente fica pensando em como está o Lucas, se está comendo, bebendo, se estão judiando dele. Esse jeito de sentir, pra mim, é pior do que sentir o que morreu. E eu sou chegada demais nos meus filhos, moça, eu não consigo tirar Lucas do meu sentido nem um minuto. Eu penso que Deus ajuda que um dia ele aparece, pra tirar isso do coração, porque viver assim dói demais. Fecha o peito o tempo todo que eu tô acordada, e quando consigo dormir, eu sonho com ele chegando”, sente Francisca.
A maior parte das crianças e adolescentes desaparecidos é de origem humilde e reside na Grande BH. As meninas são as que mais desaparecem em Minas Gerais.. Em 2015 e 2016, o número de meninos desaparecidos foi de 2.764, enquanto o de meninas foi de 5.196.
Nos últimos três anos, 12.514 crianças e adolescentes desapareceram em Minas Gerais. Deste total, 7.311 nunca foram localizados.
A faixa etária que se destaca nos índices gerais é de 12 a 17 anos. No ano passado, foram 3.470 desaparecidos nesta faixa, do total geral de 9.021
Com um índice preocupante de crianças e adolescentes desaparecidos no Estado, o aparato e equipe da Polícia Civil deixa a desejar neste setor. Mineiros na faixa de 0 a 17 anos que desapareceram nos últimos dois anos (de 2015 a novembro de 2016) representam 43% do total dos desaparecidos em Minas neste período. Enquanto isso, o Estado com o maior número de municípios do Brasil (853) conta com apenas uma delegacia especializada neste segmento. Se trata da Divisão Especializada de Referência a Pessoa Desaparecida, localizada em Belo Horizonte.
Embora leve no nome a palavra “referência”, o departamento atende prioritariamente os casos de Belo Horizonte. Para as demais delegacias do Estado, a Divisão funciona como um suporte, caso seja solicitado, em relação ao material de divulgação. Se a família de alguma cidade do interior procurar a delegacia regional querendo divulgar a foto do ente desaparecido, é a Divisão que vai liberar esse material padrão (cartazes, panfletos) e acender o alerta no sistema para computar o caso nas estatísticas. Já sobre a investigação, a condução do caso e a comunicação com a família, são as delegacias regionais não especializadas que assumem a frente.
A diferença é que a Divisão conta com núcleos integrados de atendimento psicológico e assistência social, que podem acolher as famílias belo-horizontinas que chegam em estado emocional delicado. A equipe conta com 13 investigadores e duas delegadas. Mesmo se o atendimento da Delegacia Especializada fosse aberto para as cidades do interior, a demanda jamais ia acompanhar a estrutura. Considerando somente a cidade atendida, Belo Horizonte, que no ano passado (até o mês de agosto) registrou 325 crianças e adolescentes desaparecidos, a média seria de 25 casos por investigador, fora as demais faixas etárias de desaparecidos, que também são de alçada desta delegacia.
“A Divisão vai trabalhar prioritariamente com os casos que envolvem BH. No restante do Estado, a atuação desta unidade é subsidiária, caso haja necessidade de um trabalho especial. A divulgação também é sempre feita por aqui, pois é uma referência. Mas todas as demais unidades policiais são competentes e treinadas para fazer esse tipo de investigação”, explica a delegada Indiara Thomaz Fróis Gomes.
No entanto, as reclamações sobre as investigações destes casos no interior são de falta de atenção aos familiares, pouca estrutura para estes casos e comunicação falha, como contou a lavradora Francisca Martins, 48, mãe do Lucas, desaparecido em dezembro do ano passado. Embora ela sempre leve informações sobre o filho à delegacia mais próxima, os ruídos na comunicação entre uma mãe analfabeta e uma polícia despreparada vão minando as esperanças. “Quando chego lá sempre tem um policial escrevendo nos papéis e ele fala que eu preciso de uma testemunha ou que não pode me passar informações. Igual quando viram o meu filho em uma moto com um homem desconhecido, dias depois que ele sumiu. Não adiantou nada porque ninguém anotou a placa, mas era uma moto vermelha. Ou quando eu fui lá falar o nome do homem que saiu com meu filho quando ele desapareceu. Eles interrogaram esse homem, liberaram em seguida e já tem gente falando que ele tá preparando pra fugir da cidade”, relata.
Mesmo o caso Emily, que gerou comoção nacional, foi perdendo a força na polícia com o passar do tempo. “Eu vou te falar que o pessoal da cidade foi atrás mesmo no começo, não posso reclamar. Mas depois foi perdendo a força, parece que foi perdendo a importância, sabe?”, lembra o pai da menina, Leandro Soares.
Nos romances policiais, a figura do detetive determinado, equipado de produtos e aparatos de última geração para investigar os casos com que se compromete até o último vestígio, é um clássico da ficção, mas bem distante da realidade. Em Minas, as investigações dos casos de desaparecidos funcionam sob demanda.
Segundo a delegada Indiara Thomaz Fróis Gomes, quando se investiga uma criança ou adolescente desaparecido não há limite de prazo como os tradicionais 30 dias em inquéritos sobre outros crimes. As investigações são imediatas a partir do registro da ocorrência, por questão de urgência. A partir daí, o caso continua em aberto e é investigado de acordo com as informações que chegam à polícia , como uma denúncia anônima sobre o paradeiro do desaparecido.
“Uma criança que desapareceu há cinco anos, por exemplo, este caso continua sendo investigado sempre que há alguma informação nova, alguma possibilidade de se fazer um confronto com corpo desconhecido no IML ou algo que dá para se encaixar naquele caso”, explica a delegada.
Enquanto isso, os casos se acumulam no sistema ou nos arquivos. Os casos que precedem 2014 continuam em papel, no cartório da Delegacia, podendo ser adicionados de forma gradativa no sistema. Mas de todos os dados de desaparecidos disponibilizados no site da Divisão, apenas pouco mais de 400 crianças e adolescentes estão registrados ali para consulta, considerando somente as que têm foto (muitas deles em péssima qualidade) e o mínimo de informação, como idade e data do desaparecimento.
O diretor da Associação Gente Buscando Gente, Carlos Rodrigues, criada em Governador Valadares em 2007 e que já ajudou a encontrar 5 mil pessoas em 19 estados do país nestes 10 anos, acredita que a pouca estrutura da polícia nestes casos se deve a uma falha na legislação. "Os policiais ficam de mãos atadas porque o desaparecimento não é tratado como crime, portanto, não é prioridade. O procedimento que se instaura para investigar estes casos é bem limitado, mas se houvesse na lei um mecanismo que trate esses casos como prioridade, a atuação da polícia poderia acompanhar isso. Porque na prática, os esforços não são destinados a esse tipo de situação", explica.
A entidade foi criada motivada por uma questão pessoal. Ajudar a avó a encontrar a filha que nunca conheceu. "Ela passou a vida inteira procurando a filha biológica, foi um caso vinculado a adoção, e aí passamos a acompanhar o caso dela. Minha vó morreu aos 86 anos sem conhecer a filha, mas depois de sua morte, conseguimos localizar a neta dela, que infelizmente ela também não pode conhecer", conta Carlos.
A atuação do grupo, que é mantido por meio de doações, começa a partir da história contada pelo familiar que procura um ente desaparecido. "Levamos em consideração o que é contado no B.O. e a partir daí fazemos um levantamento próprio para tentar localizar aquela pessoa. Outra forma de agir, é entrar em contato com algum veículo de imprensa da respectiva localidade da pessoa desaparecida é pedir auxílio na divulgação", pontua. Os principais casos acolhidos pela associação são os de perda de contato familiar, quando um parente, por exemplo, vai para algum lugar trabalhar e nunca mais se tem notícia, e busca por familiares biológicos em casos de adoção.
“Geralmente, casos de adolescentes homens desaparecidos envolvem pequenos crimes, uso de drogas ou contravenções. Já em casos de meninas, os motivos são brigas com os pais por causa de namorado, não permissão para sair em bailes e festas etc. O que se percebe nesses casos é que muitas vezes os pais não tem aquela interação tão próxima com o filho”, conta a delegada Indiara Gomes.
1. Em locais com muita gente, deixe uma plaquinha no bolso da criança com informações caso ela se perca
2. Nunca saia de perto ou tire os olhos da criança em locais públicos, porque ela é imprevisível
3. Se a criança sumir, deixe um familiar no local onde ela estava, porque ela pode voltar
4. Procure imediatamente uma unidade da Polícia Civil ou Militar e informe o desaparecimento
5. Converse muito com seu filho adolescente, deixe o diálogo aberto, conheça as companhias e interesses
A ocorrência de desaparecimento pode ser feita em qualquer delegacia ou batalhão, ou pelo número 0800 28 28 197, de forma gratuita e anônima. Também é possível registrar a ocorrência por meio do site da Delegacia Virtual. Clique aqui.
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* Data da publicação: 19/3/2017