Mais de 1.400 famílias moram na faixa de domínio do Anel Rodoviário de Belo Horizonte. São cerca de 30 vilas e favelas nos 27,5 km de extensão da via. Mesmo vivendo à margem de direitos básicos, essas pessoas têm uma capacidade imensa de reinventar o morar e criar vínculos comunitários. Transformam a rodovia em horta, lavanderia, barbearia, área de lazer, etc. O processo de remoção e reassentamento já se arrasta por mais de 15 anos e não tem previsão de conclusão. A demora, além de impedir os moradores de ter uma vida digna, atrasa obras de revitalização do Anel e de duplicação da BR–381, o que prejudica o transporte e o desenvolvimento social e econômico de regiões do Estado e do Brasil.
Textos: Luciene Câmara
Fotos e vídeos: Moisés Silva
Sentado em uma cadeira na passarela de pedestres, o aposentado Izaulino dos Santos Rocha, 84, observa do alto os motoristas apressados do Anel Rodoviário de Belo Horizonte. Por dia, cerca de 170 mil veículos circulam pela via para acessar a cidade ou seguir viagem pelo Brasil. Mas Izaulino não está de passagem naquela tarde de sexta-feira. O elevado é a “sacada” da casa onde ele mora há mais de 20 anos, às margens da rodovia.
Ali ele toma sol para minimizar o frio e relembra seus 38 anos de estrada, tempo em que trabalhou ‘puxando caminhão de boi’. Quem tira o aposentado dos pensamentos é o cabeleireiro Genival dos Santos Rocha, 35, que anda de casa em casa no aglomerado com a tesoura na mão. De repente, a passarela vira uma barbearia, onde o vento dá conta de varrer os fios de cabelo para a rodovia. Nem de longe aquele é um lugar propício e seguro para se morar ou cuidar da aparência. Mas é o local que milhares de pessoas encontraram para viver, enquanto reivindicam uma nova política habitacional na capital.
O Anel foi aberto à circulação na década de 60 com o objetivo de contornar Belo Horizonte e ligar as BRs 381 e 040. Com o crescimento urbano desordenado, se tornou acesso aos principais corredores da cidade. Hoje, além de saturada por um fluxo de veículos muito superior à sua capacidade, a rodovia também é quintal de pessoas que vivem expostas a acidentes, violência, poluição, preconceito, muitas sem outra opção de moradia.
Estima-se que ao menos 1.400 famílias vivam no local, segundo último levantamento, feito em 2012, e usado até hoje pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel). São cerca de 30 vilas instaladas nos 27,5 km de extensão da via.
Um endereço insalubre e estigmatizado, que não destrói a capacidade desses moradores de dar novos sentidos ao Anel. “Por mais que essas pessoas tenham seus direitos básicos negados, elas têm uma resistência e um vínculo comunitário forte para reinventar esse morar”, avalia a doutora em psicologia social pela UFMG Luana Carola Santos, responsável por um estudo sobre a vila da Paz, uma das maiores da rodovia.
Simbólico
Além de moradia, a “faixa de domínio” do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) vira jardim, horta, praça, bar, playground, igreja, campo de futebol e já foi até ‘maternidade’. Enquanto aparava os poucos fios brancos de cabelo, Izaulino contou que teve 47 filhos, cinco nascidos no Anel, sob os paletes de madeira deixados por caminhoneiros.
Genival, que coincidentemente tem o mesmo sobrenome de seu Izaulino, diz que desconfia ser um dos rebentos espalhados pelo mundo. Os dois brincam e depois se despedem como quem se conhece de longa data. “Há laços de afetividade, confraternizações e memórias que vão além do material. É o simbólico do morar”, conclui Luana.
Oficialmente, a faixa de domínio de uma rodovia é formada pela área que pode chegar a 100 m nas laterais das pistas. No Anel Rodoviário de Belo Horizonte, porém, ela ganha um novo significado, tomada por ocupações irregulares. Cenas domésticas passam a contrastar com a aridez do concreto e o tremor dos veículos pesados. Crianças, alheias aos riscos, correm e soltam pipas.
Sofás velhos são colocados em frente às casas de onde moradores observam o movimento. A gari Angelina Francisco de Lima, 54, lava roupa a um passo da pista e não esquece do dia em que um carro bateu no local, minutos depois dela entrar em casa. “Viver aqui é viver tomando susto”, diz. A parede do quarto de Angelina está quebrada e quase caindo.
A aposentada Maria das Dores Guedes, 66, pendura as roupas em seu varal às margens do Anel, contando, mesmo sem querer, com a poeira e o vento dos veículos para fazer a secagem. É bem ali ao lado que ela também semeia sua horta.
Cultivo de plantas e verduras, aliás, é figurinha fácil nas margens da rodovia. Algumas hortas são comunitárias, como uma em fase inicial no bairro São Francisco, ao lado da vila Santa Rosa, na região Noroeste. “Quem realmente precisa, pode chegar e pegar”, avisou o desempregado Amadeu da Costa, 59.
Em alguns casos, o capricho dos moradores é tanto que a casa da pensionista Maria da Luz Souza, 74, na vila Aldeia, já foi confundida com uma floricultura. São mais de 40 plantas. “Até os bombeiros já passaram aqui pedindo mudas. Muitos querem pagar, mas eu prefiro doar”, contou Maria da Luz.
A vida dos moradores às margens do Anel Rodoviário é marcada por desocupações. Muitos foram parar ali depois de serem expulsos de vilas e favelas em outros cantos da região metropolitana. Montaram barracos de lona ou madeira e, aos poucos, foram levantando os tijolos. As construções desmoronaram algumas vezes por retiradas forçadas. Mas eles voltavam dias depois.
"Eles derrubaram nosso barraco umas duas ou três vezes. Eu estava trabalhando e meus filhos levantavam tudo sozinhos. Chegamos a dormir ao relento", contou a pensionista Maria da Luz Ribeiro, 74, que mora há 40 anos na Vila Aldeia, no viaduto São Francisco, na região Noroeste.
Os moradores relatam tentativas de remoção ao longo de décadas. Por várias vezes, também foram orientados a não fazer melhorias em suas casas porque seriam retirados em breve. Mas eles não se intimidavam e logo tratavam de reformar suas moradias e até construir novos espaços.
A casa de dona Maria da Luz, por exemplo, é um oásis em meio ao caos. Ela transformou um barranco em uma residência silenciosa, arejada e toda decorada com plantas, tapetes e enfeites nos móveis. Por estar abaixo do nível do Anel, o barulho dos caminhões é imperceptível.
“Qual o objetivo da sua matéria?”, “Você vai só falar mal?”, questionaram alguns moradores. Talvez porque nem eles consigam simplificar a resposta sobre como é viver às margens do Anel Rodoviário de Belo Horizonte. Muitos dizem que já se “acostumaram”, que “é tranquilo”. O barulho já não incomoda mais, tem ônibus toda hora, é perto do centro da cidade. Mas mesmo com essas vantagens, dizem que não estariam ali se tivessem outra opção.
“Ninguém mora na BR porque quer, é porque precisa. Corremos risco toda hora”, diz a salgadeira Ivone Silva Antônio, 50, que está há 18 anos na Vila da Luz, na região Nordeste da capital.
O fluxo de veículos no Anel Rodoviário não dá descanso. Seu José Inácio dos Reis, 74, , já cansado pela idade, vive literalmente preso dentro de casa. As pernas já não o ajudam mais e ele só anda lentamente com a ajuda da muleta. Uma condição que não combina com a velocidade da rodovia que passa na porta de sua casa, na Vila da Luz, na região Nordeste da capital.
“Estou preso em uma ilha. É rodovia de um lado e do outro, não tenho saída. Se eu tentar passar, posso mandar fazer o caixão antes”, comentou, em tom de desespero. A Vila da Luz fica no entroncamento entre as BRs 381 e 262. Para acessar a passarela, que fica a cerca de 500 metros, os moradores têm que atravessar uma das pistas.
O comandante do policiamento do Anel Rodoviário, tenente Pedro Henrique Barreiros, da Polícia Militar Rodoviária (PMRv), diz que rodovia não é, em hipótese alguma, lugar de pedestre. Mas admite que, no caso da Vila da Luz, não há saída. “O que PM faz é conhecer os moradores e repassar dicas para evitarem a beira da rodovia, não soltar papagaio no local”, afirmou Barreiros.
A velocidade máxima permitida no Anel Rodoviário é de 70 km/h para veículos leves e 60 km/h para pesados. Dezenove radares estão em operação atualmente no local, mas a imprudência dos condutores é constante. “Percebemos motoristas circulando acima de 110 km/h no anel. Se a sinalização está aí, tem que respeitar”, ressaltou o tenente.
Se há uma coisa em comum entre os moradores, é o medo de serem transferidos para apartamentos. "É muito tumultuado, e não dá para ter liberdade e criar meus passarinhos", explicou o ajudante de limpeza José Geraldo Luzia Filho, 53. A justificativa se explica no estilo de vida deles. A maioria tem plantas, gatos, cachorros, gosta de sentar na porta de casa, observar a rua, conversar com o vizinho. Eles não se imaginam vivendo "presos" em conjuntos habitacionais distantes.
O diretor-Presidente da Urbel, Claudius Vinícius Leite, diz que o reassentamento poderá ser em casa, desde que seja possível encontrar uma com um preço compatível com as moradias populares do programa Minha Casa, Minha Vida. "Dentro da cidade é natural que exista a verticalização. É uma escolha, ou a pessoa fica bem assistida dentro da cidade, na condição verticalizada, ou vai para mais distante, na região metropolitana, onde é possível achar uma casa como eles querem", explicou.
Para a doutora em psicologia social Luana Carola Santos, há um forte cunho higienista na política urbana de Belo Horizonte. "É preciso questionar essa limpeza urbana que vem sendo feita. Quem não está dentro das condições sociais e políticas, é excluído para longe", ressaltou. "Não vejo isso acontecer (higienização). A população ocupou áreas impróprias. Para reordenar o espaço urbano, é preciso tirá-las do lugar e reassentá-las em condições verticais? É preciso, sim. Mas o município vem pagando um valor alto também para reurbanizar vilas e favelas e garantir essa premissa de manter as pessoas próximas da origem", contestou Leite.
Sonhar alto para moradores às margens do Anel Rodoviário de Belo Horizonte é ter uma “casinha” com quintal para a criação de bichos e plantas, além de fácil acesso a comércio, escola e centro de saúde. É ter também a família por perto e manter os vínculos com a cidade e os amigos.
Muitos querem sair da rodovia, desde que possam participar das escolhas que envolvem essa mudança. Mas o processo de desocupação das margens da estrada já se arrasta por mais de 15 anos e não tem previsão de conclusão, impedindo os moradores de terem moradia digna e atrasando não apenas a revitalização do local, mas também a reforma de outra estrada, a BR–381.
A Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel), que integra o processo de reassentamento com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e a Justiça Federal, informou que não há prazo para a remoção completa dos moradores.
“Temos 1.400 famílias cadastradas, mas nessa primeira etapa vamos priorizar 270 que estão em aluguel social ou que moram em áreas onde o Dnit quer abrir obras de imediato para facilitar o tráfego”, diz o diretor-Presidente da Urbel, Claudius Vinícius Leite. A meta é concluir a primeira etapa até dezembro. Para 2018, está previsto o início do reassentamento de mais 1.090 famílias.
Cronograma de remoção e reassentamento
Até dezembro de 2017: 264 famílias
A partir de 2018: 1.090 famílias
Desenvolvimento não chega
Estradas construídas há décadas, que precisam de ampliação e melhorias para se adaptar ao atual fluxo de veículos, ficam estagnadas no tempo com entraves nas reintegrações de posse, mas também com a falta de recursos e burocracia. Como consequência, os acidentes se multiplicam, e o crescimento social e econômico esperado para algumas regiões não acontece. “A logística (proporcionada pelo transporte) é fundamental para impulsionar a economia e transformar regiões em vetores de desenvolvimento”, defende o presidente da Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg) Regional Vale do Aço, Luciano Araújo.
É o caso da duplicação da BR–381, no sentido Vitória (ES), esperada há décadas. Um dos lotes, o 8B, na chegada à capital mineira, envolve o reassentamento de mais de 1.000 famílias. Dois editais publicados até agora foram fracassados justamente porque o valor oferecido pelo Dnit para a obra e construção de novas moradias não foi aceito pelas empreiteiras. “A complexidade aumenta muito por causa do impacto social”, explicou Araújo.
Outra melhoria que depende da remoção das famílias é a revitalização do Anel. O último projeto elaborado pela Secretaria de Estado de Transportes e Obras Públicas (Setop) foi reprovado pelo Dnit em março deste ano “por não estar de acordo com as normas técnicas exigidas”. O Dnit descartou também a municipalização da rodovia, proposta pela prefeitura, que se mostrou interessada em resolver os problemas do Anel, entre eles, o das moradias.
Ninguém está a salvo
Sem uma solução, outro impacto são os acidentes e atropelamentos. Foram 621 batidas de janeiro a junho deste ano, média de 3,4 por dia. No mesmo período, foram 33 atropelamentos e sete mortos. Quase todo morador das vilas tem um familiar ou amigo morto na rodovia.
A salgadeira Ivone Silva Antônio, 50, perdeu a mãe há três anos. Maria Alves de Souza, 63, havia sido uma das primeiras moradoras da Luz e conhecia a rodovia como poucos. “Ela viveu lutando para que colocassem um radar de velocidade próximo da vila, mas só colocaram depois que ela morreu”, contou Ivone.
Os barracos de madeirite chegam a balançar com o vento frio e a força dos caminhões que passam acelerados pelo Anel Rodoviário da capital. Muitas casas estão fechadas por fora, com cadeado. Outras, de alvenaria, estão em processo de construção. Assim, a Vila Esperança, uma das mais novas da rodovia, na altura do bairro Betânia, na região Oeste, vai se consolidando.
“As pessoas vieram do aluguel ou viviam em situação de rua. Muitos não tem condição de construir uma casa de tijolo, por isso vivem nos barracos de madeira que ameaçam cair toda hora”, relata a operadora de caixa Emiliana Santos Oliveira, 21, uma das lideranças do grupo.
A comunidade, segundo ela, surgiu há quatro anos e hoje tem 134 famílias que vivem de forma precária no trecho sob concessão da Via 040. A empresa afirma que identificou as primeiras invasões em julho de 2015 e, dois anos depois, notificou as famílias e ajuizou ação de reintegração de posse na Justiça Federal. Ainda não há uma decisão sobre o destino delas.
O programa Concilia, para remoção e reassentamento dos moradores do Anel, em andamento na Justiça Federal, só inclui os moradores que ocupavam a via até o ano de 2012, quando foi feito um cadastramento. “Foi estabelecida essa linha de corte. Por enquanto, não terá remoção dessas novas famílias. Vamos ter que avaliar o nível de fragilidade de cada uma e refletir sobre o que fazer. Nem todas têm a mesma vulnerabilidade”, declara o diretor-presidente da Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel), Claudius Vinícius Leite.
“Temos medo de uma remoção forçada, mas estamos correndo atrás dos nossos direitos. Ocupamos porque não tínhamos outra opção de moradia”, argumenta Emiliana.
Julho de 2012: O Dnit firmou Termo de Compromisso com o Departamento de Edificações e Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DEER-MG) para a elaboração do projeto de engenharia de revitalização do Anel Rodoviário.
Janeiro de 2014: DEER entregou ao Dnit a minuta do projeto, mas o Dnit considerou que havia "inadequações técnicas".
Abril de 2014: DEER reapresentou a minuta de projeto, mas Dnit ainda considerou que continha inadequações técnicas.
Dezembro de 2016: Com a intervenção da Justiça Federal, foi estabelecido um prazo de 90 dias para que o Dnit analisasse o anteprojeto apresentado pelo DEER.
Fevereiro de 2017: A conclusão da equipe técnica do Dnit foi de que “o projeto não atende aos parâmetros técnicos normativos".
Atualmente: O Dnit está na fase final de elaboração dos editais para contratação dos projetos executivos, que serão lançados ainda em 2017
Prioridades. As revitalização do Anel vai abranger, em princípio, os principais gargalos no Anel, como alargamentos de viadutos e construção de passarelas. O órgão não deu mais detalhes.
Moradias. Já foram prospectadas 89 casas e 616 apartamentos para o reassentamento dos moradores. A escolha vai levar em consideração o acesso a serviços públicos. As famílias terão prazo para visitar até três unidades e escolher a que melhor atende suas necessidades.
Conciliação. Na avaliação do coordenador de Engenharia do Dnit, Danilo Rezende, esse é um processo de reassentamento sem conflito, “um trabalho que pode servir de base para futuros programas de reassentamento do órgão”.
BR–381. Sobre o lote 8B da duplicação da BR–381, que abrange o Anel Rodoviário da capital, ainda não há data para publicação de novo edital.
Contestação. A Setop já encaminhou ao Ministério dos Transportes, Portos e Viação Civil correspondência refutando os itens apontados pelo Dnit para não acatar o anteprojeto do DEER. Ainda não houve resposta.
Revitalização. O projeto entregue ao Dnit contempla as modalidades de tráfego (urbano e rodoviário).
O mesmo está disponível no site: Clique aqui
Seu Izaulino quer ir embora para Vitória, seu Ventura e seu José Inácio sonham com a aposentadoria, dona Ivone quer segurança para os netos, dona Maria Guedes quer continuar onde está, às margens do Anel. Cada um tem sua história, seus sonhos, suas necessidades. A maioria não tem fonte de renda e vive a incerteza do futuro. Saiba um pouco sobre alguns dos moradores ouvidos pela reportagem.
José Inácio Reis,
Desempregado, 74 anos
A primeira pergunta de seu José Inácio para a reportagem é: " “Será que eu consigo me aposentar, moça?” Como muitos idosos que vivem às margens do Anel, seu José Inácio ainda não está aposentado e vê na reportagem a esperança de conseguir uma ajuda para a aquisição do benefício. Um direito que fica distante diante da falta de informações, de assistência social, de acesso às agências da Previdência Social. Seu Inácio vive em casa, às margens do Anel, quase imobilizado pela idade e pelos perigos da rodovia. Há dois anos, ele diz que sobrevive com o auxílio-doença, dinheiro que, segundo ele, está com os dias contados.
Para sair de casa, o morador precisa encontrar alguma boa alma que o leve de carro, já que não consegue atravessar o Anel sem risco de atropelamento. Ainda assim, a carona não sai de graça. Ele paga R$ 20 quando tem que ir ao centro de saúde no bairro vizinho, e R$ 50 para sacar o dinheiro do auxílio-doença em uma agência da Caixa.
***A família precisa de ajuda de alimentos. Quem quiser ajudar, o endereço é Beco da Conceição, nº 430, Vila da Luz.***
Ventura Batista Ferreira
Catador de materiais recicláveis, 65 anos
Expulso de uma favela na capital, foi morar às margens do Anel, há 30 anos. Vive na Vila da Paz com a mulher e o filho dela. Já se acostumou com o barulho e considera o local tranquilo. Mas gostaria de mudar para uma casa que seja sua. Não aceita morar de aluguel novamente nem ir para apartamento. "Pode ser uma casa pequena, mas que seja minha, aqui na região mesmo ou em outro lugar", afirmou.
Com dores pelo corpo, ele não aguenta mais trabalhar todos os dias e vive do dinheiro que tira com algumas sucatas e materiais recicláveis. Também pediu ajuda para se aposentar. Guarda os documentos com cuidado em uma bolsa, mas não sabe como deve proceder para ir atrás do benefício. Enquanto isso, tem passado necessidade. A mulher dele colocou uma placa em frente à casa pedindo doação de alimentos, roupas e calçados.
***Quem quiser ajudar a família, o endereço é Rua Nacional, nº 17, vila da Paz***
Cristina Aparecida Crispim
Do lar, 35 anos
Morava em Ibirité, na região metropolitana de Belo Horizonte. Teve dificuldades financeiras e foi para a casa da mãe, na Vila da Paz, há 7 anos. Construiu uma casa em cima, onde vive com a filha de 15 anos.
Não esquece o dia em que a roda de um caminhão se soltou, em abril deste ano, e passou por cima do seu telhado, caindo no quintal de vizinhos. "Podia ter matado alguém", disse. Ela também quer ser removida e reassentada em um lugar que tenha água, luz, asfalto e uma área para ela continuar com suas plantações de verduras. "Um lugar onde a gente possa ter uma vida digna", completou.
Izaulino dos Santos Rocha
Aposentado, 84
Baiano, veio de Vitória (ES) para Belo Horizonte depois de sofrer um atentado, há 30 anos. "Fui assaltado e os bandidos foram presos. Quando saíram da cadeia, tentaram me matar. Peguei minha mulher e meus filhos e vim para cá com o pouco que tinha", relembra. Foi um dos primeiros moradores do Aglomerado da Passarela, no bairro São Francisco, na região Noroeste.
Montou uma lona no local e começou a viver com a família. Ele diz que tem 47 filhos espalhados pelo Brasil, cinco nascidos às margens da BR. Atualmente, 13 moram na capital mineira e região metropolitana. Adotou mais dois meninos que foram deixados pelas mães na sua casa. Seu maior desgosto é ter três filhos presos por envolvimento com drogas. Por isso, quer ir embora daqui com os dois filhos adotivos e voltar para Vitória. "Lá meus filhos gostam muito de mim", contou.
Geraldo Lopes
Desempregado, 48 anos
Mora há 10 anos no Aglomerado da Passarela, no bairro São Francisco. Gosta do lugar porque é perto do centro da cidade. "Vou à pé, gasto 25 minutos", relatou.
Ele não quer sair do local nem acredita que o tal processo de remoção e reassentamento acontecerá. "Só saio daqui se não tiver outro jeito". Um dos seus melhores passatempos é ficar em cima da passarela, vendo o movimento de veículos no Anel.
Ivone Silva Antônio
Salgadeira, 50 anos
Mora há 18 anos na Vila da Luz. Sua mãe foi primeiro, depois ela se mudou com os cinco filhos. Os primeiros dias foram debaixo de lona, sem energia elétrica e esgoto.
Hoje ela tem dois imóveis no local, a sua casa e uma loja onde vende salgados. É a que tem mais crianças na vila. São sete netos vivendo ali, uma tensão constante para ela que perdeu a mãe atropelada na rodovia, há três anos. Reclama da falta de comércio e serviços na vila. "Temos que atravessar a BR para tudo, é muito perigoso", afirmou. Ela diz que gostaria de sair das margens do Anel, mas só se for uma casa e seus filhos puderem ir junto.
Maria das Dores Guedes
Aposentada, 66
Mudou para a Vila da Luz há 19 anos para ajudar o filho a cuidar das crianças. No começo era um barraquinho de lona, não tinha nem banheiro. Depois ela colocou madeirite e foi aumentando a casa.
"Aqui é bom, gosto de cozinhar no fogão à lenha e tem lenha perto. Também consigo reciclar, recolho o material e o pessoal vem buscar. Se fosse em um bairro distante, não teria como", comenta. Ela diz que o melhor para ela é ficar ali onde está. Mas se tiver que mudar, ela aceita, só não quer apartamento.
Orcenil Pereira da Silva
Catador de material reciclável, 59 anos
Mudou para a Vila Aldeia, no Viaduto São Francisco, no Anel Rodoviário, em 16 de fevereiro de 1991. Não esquece a data porque foi o último dia que pagou aluguel. Lembra que passou bastante aperto com a esposa e os cinco filhos.
"Hoje passo dificuldade ainda. Não tem serviço, não tem nada. Mexo com reciclagem, mas está ruim demais. Arrumo lote para capinar, mas mesmo assim", relatou. Sente falta de ter uma casa com quintal e sem barulho de caminhão.
Maria da Luz Ribeiro de Souza
Pensionista, 74
Toda vida gostou de plantas, mas há 40 anos mora na Vila Aldeia, no Viaduto São Francisco, onde não tem quintal. Como alternativa, ela fez um jardim com mais de 40 vasos na entrada da sua casa. Ela conta que gostava de viver no local, mas "depois que mataram meu filho, desgostei".
Hoje, gostaria de morar em um bairro mais sossegado e distante. "Um lugar que não seja na curva do Anel, onde eu possa ter minhas plantas". Maria da Luz diz que já preencheu uns cinco cadastros para remoção e reassentamento e aguarda o dia que a mudança, enfim, se realizará.
Concilia. Em 2013, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União moveram a Ação Civil Pública nº 57367-09.2013.4.01.3800, que deu origem ao Programa Judicial de Conciliação para Remoção e Reassentamento Humanizados de Famílias do Anel Rodoviário e BR-381. O Concilia BR-381 e Anel, uma iniciativa da Justiça Federal e do Dnit, vem sendo implementado desde 2014. Mais informações no site.
Pesquisa. A psicóloga social Luana Carola Santos investigou, entre 2013 e 2017, como os moradores às margens do Anel Rodoviário vivenciam o processo de remoção e como se relacionam com o lugar em que vivem nos aspectos simbólicos, políticos, comunitários e cidadãos. O trabalho corresponde a sua tese de doutorado no Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Um artigo sobre o trabalho está disponível clicando aqui.
Mais. Fotos feitas durante a pesquisa também estão neste site.
Reportagem: Luciene Câmara | Fotografias e vídeo: Moisés Silva | Editor Portal O Tempo: Cândido Henrique Silva | Infografias: Andrea Viana | Revisão de Texto: Thalita Martins e Luciara Oliveira | Diretor Executivo: Heron Guimarães | Editora Executiva: Lúcia Castro | Secretaria de Redação: Michele Borges da Costa, Murilo Rocha e Renata Nunnes | Data de publicação: 7/8/2017