Um dia para prevenir suicídios

O dia 10 de setembro é escolhido para o mundo discutir formas de prevenção à morte autoprovocada

JOANA SUAREZ

Foram dois anos e meio de namoro convivendo com momentos de depressão, sumiço durante dias, recuperação aparente e agitação, até o suicídio consumado. Camila*, hoje com 27 anos, sabia que o namorado passava por fortes dificuldades emocionais, temia que ele tentasse se matar, mas não tinha coragem de tocar no assunto com ele nem com ninguém. “Quando ele desapareceu a primeira vez (por quatro dias), fiquei muito aflita, me sentia impotente, tinha vergonha de falar com as pessoas e elas me julgarem, era um assunto pesado. Você acha que é capaz de fazer a pessoa voltar a si com o amor”. Há quatro anos, o namorado dela pulou de uma ponte em uma estrada perto de Belo Horizonte.

Vergonha, medo, preconceito tabus, mitos... Tudo isso faz com que os pensamentos suicidas fiquem presos em uma escuridão que torna impossível de enxergá-los e, assim, evitá-los. No caminho para dar luz a essa realidade, que mata uma pessoa a cada 40 segundos no mundo, se convencionou a data de 10 de setembro como o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. E, durante este mês, chamado Setembro Amarelo, o assunto será discutido por associações, especialistas e órgãos envolvidos na campanha. “Esconder não resolve, porque você vai sempre carregar essa tonelada de sofrimento; se você repartir esse peso, fica mais leve”, afirma Rute*, 61, cujo marido se suicidou.

Nas reportagens a seguir, O TEMPO mostra histórias como a de Rute, estatísticas, causas, formas de tratamento, de ajuda e de prevenção. Para a produção desse material, ouvimos mais de dez pessoas que perderam companheiros, pais e amigos e pessoas que tentaram se matar, além de psiquiatras e psicólogos que estudam o tema. Visitamos locais que lidam diariamente com o suicídio: o Hospital de Pronto-Socorro (HPS) João XXIII, que atende cerca de cinco casos por dia, o Centro de Referência em Saúde Mental (Cersam) da Pampulha e o Centro de Valorização da Vida (CVV), que presta apoio emocional às pessoas, prevenindo o suicídio pelo telefone 141 e por outros meios. Contudo, uma certeza: trata-se de uma morte evitável, mas a prevenção só virá quando pudermos falar mais, sem restrição, sobre ela.

“O CVV é um dos poucos respiros na sociedade que aborda o suicídio sem preconceito, sem tabu. Reconhecer o direito à morte voluntária também é uma situação polêmica. O suicídio tem uma marca antiga e é associado com loucura, com crime”, afirma a psicóloga Fernanda Marquetti, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que atua na rede de saúde mental. “São pessoas comuns que se matam”, continua Fernanda, “não são monstros”. “Envolve sexualidade, gênero, trabalho, falta de expectativa entre a população idosa. Se você tem uma rede de sociabilidade, consegue discutir, mudar de trabalho e achar uma opção de vida sem tanto sofrimento”, conclui.

Após tentar suicídio, Marcela*, 22, buscou tratamento e hoje acompanha pessoas que passam pelo mesmo que ela. “Amor e atenção são a base de tudo. Vivemos em uma sociedade que não se importa com o outro, falta apoio familiar, e o sistema de saúde que temos é carente na área de psicologia”, diz.

O namorado de Camila tinha 25 anos, teve muitas fases ruins, mas, quando se matou, estava retomando as atividades, fazendo terapia, vivia em uma mistura de euforia e ansiedade. “Ele se mostrava recuperado nessa época, jamais imaginei que faria isso”, revela. Especialistas alertam que é preciso diferenciar tristeza de depressão e refletir sobre o que faz a pessoa desistir da vida.

Ainda há um longo caminho a percorrer para mudar as concepções culturais sobre o suicídio e conseguir reduzir as mortes, mas nos últimos anos as barreiras estão começando a cair. Em junho, ocorreu o I Congresso Brasileiro de Prevenção ao Suicídio, na capital mineira, que tinha como título “Uma tarefa para muitas mãos”.

*Nomes fictícios
Saiba mais

Data. O Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio foi criado em 2003 pela associação internacional de prevenção (IASP) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O Setembro Amarelo foi uma iniciativa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com o CVV e outras entidades. A Associação Brasileira de Estudos e Prevenção ao Suicídio (Abeps) foi criada no ano passado.

Denuncie. Se alguém postar um conteúdo que possa indicar uma tendência ao suicídio – “cansados da vida”, “querem sumir”, “morrer” –, você pode denunciar a publicação ao Facebook, que lançou, em junho, uma ferramenta para alertar a pessoa, oferecendo dentre as opções de ajuda conversar com um agente do CVV por telefone, chat ou e-mail.

OS NÚMEROS

O suicídio é a principal causa de morte violenta, com 11,4 óbitos para cada 100 mil habitantes.

É a principal causa de morte entre jovens de 25 a 34 anos e a 15.ª causa no mundo.

A média brasileira, é de 5,8 mortes a cada 100 mil habitantes, mas ocupa o 8º lugar no ranking em números absolutos por ser muito populoso. Dentre os 172 países que notificam a OMS, o Brasil está entre os 29 que não conseguiram reduzir os suicídios entre 2000 e 2012.

Em 2015, os bombeiros atenderam a 1.012 tentativas de suicídio em Minas, quase três por dia, além de 150 suicídios consumados. A corporação realiza periodicamente treinamentos para esse tipo de salvamento, como em casos de pessoas que querem pular de prédios e pontes. O último ocorreu na ponte do viaduto da Mutuca, em Nova Lima.

Associações de ajuda:

Centro de Valorização da Vida: www.cvv.org.br

Rede Brasileira de Prevenção ao Suicídio: www.redebraps.com.br

Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos: www.abrata.org.br

Apoio a Perdas Irreparáveis: www.redeapi.org.br

Pravida - Projeto de Apoio à Vida: www.pravidaufc.webnode.com.br

Precisamos falar sobre suicídio

Desmitificar esse tipo de morte é a melhor forma de prevenção, pois abre espaço para ouvir o outro

Você conheceu alguém que suicidou-se? É só pensar um pouco que logo vem à mente um parente, um vizinho, um amigo... Mesmo sendo tão próximo das pessoas, a palavra suicídio costuma ser perturbadora, algo aparentemente proibido de se comentar. Um poderoso tabu ronda esse assunto há séculos e se tornou imprescindível quebrá-lo para tirar a cortina que esconde essa realidade: no mundo, a cada 40 segundos, uma pessoa dá fim à própria vida, vítima de um silêncio interrompido pela morte, que manifesta, de forma drástica, o sofrimento humano.

Entre os brasileiros, são aproximadamente 12 mil mortes voluntárias por ano. Em média, uma a cada 45 minutos, levando em conta o ano de 2012 – último consolidado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). São mais óbitos do que os provocados pela Aids – 10 mil morreram vítimas da doença no país, no mesmo ano. Trazendo as estatísticas para a realidade mineira, mais de três pessoas se mataram por dia em 2015. Entre 2006 e 2014, houve um crescimento de 35% dos suicídios em Minas, conforme a Secretaria de Estado de Saúde.

A começar por esses números, ainda subnotificados, e pelo apelo, em coro, de especialistas, vítimas e parentes, não há dúvidas: precisamos falar sobre suicídio, pois é a melhor forma de prevenção. Cerca de 90% dessas mortes poderiam ser evitadas.

O marido de Rute*, o pai de Denise, o namorado de Camila* e o pai de Eugênio não falaram que queriam se matar. A amiga de Raquel* avisou, mas ninguém acreditou. Restou aos familiares um luto dos mais difíceis de lidar. É por isso que eles são chamados por psicólogos e psiquiatras de sobreviventes. “Para cada suicídio, pelo menos cinco ou seis pessoas em volta são afetadas”, diz o presidente da Associação Brasileira de Prevenção ao Suicídio, o psiquiatra Humberto Corrêa.

Rute*, 61, herdou uma “depressão severa” com a morte do marido, que foi encontrado por ela enforcado em casa. “Uma cena horrível”, relembra. Passados seis anos, ela ainda se sente “culpada por alguma coisa”. “Tem que buscar uma terapia para a gente enxergar que a opção foi dele, mas me abalou muito. Hoje me descontrolo com qualquer emoção. O médico ainda vê em mim uma tristeza”, descarrega.

O marido, segundo ela, era depressivo havia 20 anos, mas “nunca deu uma dica de que faria isso”. “Ele vinha ficando deitado. No dia, nós almoçamos juntos, ele até brincou dizendo que eu fiz uma comida que ele não gostava. Depois, eu estava costurando e vi que ele se levantou. Achei que tinha animado. Escutei o barulho da escada, mas jamais passou pela minha cabeça...”. Na véspera, eles tinham ido ao médico conferir a medicação contra a depressão. “Estava correta, mas não funcionou”.

A cada 40 segundos, uma pessoa se mata no mundo

Razões. “Nunca tente entender. Você não vai entender”, disse, com conhecimento de sobrevivente, um amigo da produtora de vídeo Denise Flores, 34, quando ela, há 11 anos, perdeu o pai. Ele estava sozinho na fazenda da família e deu um tiro no peito. “Fui até lá achando que meu pai tinha sido assassinado e cheguei perguntando para minha mãe quem havia feito aquilo. Só então ela me disse a verdade: foi ele mesmo”.

A produtora buscou respeitar o que o pai fez, pois acredita ter sido um “deslize”. “É difícil perdoar, às vezes, você está bem com isso, às vezes, não. Se ele pudesse voltar atrás, se nós falássemos com ele, acho que ele não faria”. Denise teve que responder as pessoas: como pôde não ter notado nada antes? “Depois do meu pai, dois amigos da faculdade se mataram. É importante dizer que existem lugares que ajudam e têm possibilidade de oferecer socorro”.

*Nomes fictícios
ASSUNTO PROIBIDO

Casos são subnotificados por causa de preconceito

O pai de Denise Flores suicidou-se quatro meses depois de tomar posse como prefeito, e a sua morte foi notícia pública. Mas, geralmente, a família tenta esconder, e o assunto é comentado “a boca miúda”. Parentes pedem para mudar a causa da morte na certidão de óbito ou, quando alguém chega ao hospital porque tentou se matar, não dizem a motivação e registram como acidental. A OMS estima que a subnotificação dos casos seja em torno de 40%.

“A morte em si já é um tabu, a morte voluntária, então, é mais assustadora ainda. E as pessoas têm vergonha. Se você começa a namorar alguém, você não pode falar que tentou suicídio”, diz a psicóloga Fernanda Marquetti.

Eugênio Tadeu, 55, cresceu ouvindo que o pai havia morrido do coração, mas ele suicidou-se quando o filho tinha 7 anos. “Pouco tempo depois, meu tio também se matou. Até hoje minha família não fala muito, é colocado um mistério. Só depois de anos de terapia, eu aceitei. Ora, meu pai morreu se matando, foi uma responsabilidade dele diante da própria vida. Afinal, viver não é fácil”, afirma, parafraseando Guimarães Rosa: “Já falava Riobaldo: está morto quem não peleia”.

ALERTA

Quem avisa não está blefando

Se alguém fala em se matar, é preciso dar atenção e não deixar a pessoa sozinha, dizem especialistas

Se uma pessoa falar que vai se matar, acredite, apoie e não a deixe sozinha. Essa foi, talvez, a lição mais repetida à reportagem por psicólogos, psiquiatras e pessoas que perderam parentes. Expressões como “quem fala não faz” ou “cão que ladra não morde” são mitos sociais que andam lado a lado com o tabu do suicídio. A amiga de Raquel*, 45, falou tantas vezes que se mataria nos últimos anos que ninguém acreditava que isso ocorreria: Jaqueline* tentou quatro vezes com remédios, drogas e se jogando do carro, até que, há poucos meses, na quinta tentativa, ela conseguiu. “Não deu tempo de acudi-la”, expôs Raquel.

Jaqueline morreu um mês e meio antes de completar 42 anos. Quando jovem, sofria com sua indefinição sexual e começou a usar drogas, conta Raquel. Ela chegou a ter uma vida estável, mas perdeu tudo. O tratamento para depressão não progredia. Raquel a ouvia por horas, até de madrugada. “É um negócio que suga a gente, eu só podia ouvir, mas não podia sentir por ela. A família já não tinha mais paciência. Se eu conhecesse mais sobre isso, talvez pudesse ter feito alguma coisa”, desabafa Raquel, acrescentando, emocionada, ainda “esperar as ligações” de Jaqueline.

O psiquiatra Humberto Corrêa afirma que o suicida quase sempre conta que está pensando em se matar, e é um erro não prestar atenção às ameaças e aos sinais. Segundo ele, “mais ou menos 20% da população, em algum momento da vida, vai pensar em suicidar-se, mas não quer dizer que vá fazê-lo”.

Para o professor de psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Nilson Berenchtein Netto, existem pessoas que vivem as mais diversas situações, mas só encontram como alternativa tirar a própria vida. “Quais são as condições de vida e de saúde delas?”, questiona.

A transexual Fernanda Tolotto, 26, não queria “viver o resto da vida” de um jeito que ela não se reconhecia. Em 2009, ela tentou se enforcar, mas o telhado arrebentou. Em 2012, cortou os pulsos. Nas duas vezes, havia sido iludida de que conseguiria fazer a cirurgia de redesignação sexual. Ela continua na fila de espera da operação, fazendo tratamento hormonal e terapia psicológica. “Meu sonho é sair da sala de cirurgia uma nova pessoa. Mas jamais tentarei me matar de novo”.

Ajuda. Já Kátia*, 34, decidiu suicidar-se por acreditar que não suportaria o fim do primeiro relacionamento homossexual, que a fez mudar radicalmente de vida. Ela abandonou o noivo para investir na mulher pela qual se apaixonou, mas o “sonho” durou seis meses. “No dia do término, tudo perdeu o sentido em fração de segundos. Num ato impensado, comprei veneno de rato e fui para a igreja, desafiando Deus por ter me deixado viver aquilo. Foi minha primeira relação de amor, meu primeiro orgasmo”. Kátia foi socorrida pela amiga com quem falava ao telefone na hora. Passado o susto, a família a levou para tratamento diário em clínica psiquiátrica durante um mês, período que ela define ser uma lacuna na vida, pois não se lembra de nada. “Tenho muita mágoa, mas entendo eles terem feito isso”.

Após dez anos daquela decisão, Kátia, que já tinha recuperado sua rotina, enfrenta a morte de seu pai, um grande amigo. O pensamento suicida foi, então, retomado, mas agora, em suas palavras, seria uma “autoeutanásia”. “Eu tinha uma dor incurável. Comecei a planejar cada passo da minha morte, até que encontrei, por acaso, a psicóloga com quem me consultava antes. Olhei para ela e falei: ‘eu preciso de você’”. Ano passado, Kátia tatuou no braço: Acredite-se.

Saiba mais

Repetição. Uma das razões pela qual se deixou de escrever e noticiar suicídios é o risco de repetição. No século XVIII, um romance do alemão Goethe (“Os sofrimentos do jovem Werther”) trazia um protagonista suicida que teria “inspirado” a morte de diversos jovens, provocando o “efeito Werther”.

Análise. Especialistas, porém, avaliam que abordar o suicídio, as formas de prevenção e os números alarmantes é necessário e não determina outras mortes. “Na verdade, é uma censura. É como impedir que se fale sobre sexualidade na epidemia da Aids”, afirma a psicóloga Fernanda Marquetti.

História

A morte autoprovocada era vista como o pior dos pecados – nos antepassados, proibia-se que o suicida fosse enterrado em cemitérios cristãos. Também chegou a ser considerada crime de assassinato, com punições como confiscar os bens da pessoa que morreu, arrastar em praça pública e condenar quem tentava se matar. Foi santo Agostinho que, no século IV, criou a palavra suicídio (homicídio de si). Apenas no século XX, a Igreja Católica passou a aceitar o suicida por acreditar que ele se arrependia no último momento e era doente mental. As mudanças, porém, ainda não foram suficientes para afastar a rejeição em torno do assunto.

Diferenças

Estimativas mundiais mostram que os homens representam a maioria das mortes autoprovocadas, mas são as mulheres que mais tentam. A explicação se dá porque eles costumam usar meios mais agressivos, e elas buscam tratamento, falam mais o que sentem. Para Fernanda Marquetti, esses dados indicam que o suicídio está relacionado a uma série de circunstâncias socioculturais. “As diferenças de como homem e mulher se matam envolvem o relacionamento masculino e feminino no mundo”. Ela cita também que as mortes podem estar relacionadas a situações extremas de sofrimento no trabalho, como ocorre na China, onde há jornadas exaustivas.

VERTENTES

Sintoma psiquiátrico ou questão social?

Um estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 98,5% das vítimas de suicídio tenham transtornos mentais – depressão, uso de drogas, esquizofrenia ou psicose. Sobre o restante (1,5%), não se chegou a uma conclusão. Estudiosos da psiquiatria e da psicanálise investigam fatores genéticos e biológicos para explicar as mortes autoprovocadas. “O suicídio vem sempre de uma doença mental. Mais ou menos 35% dos casos estão ligados a transtorno bipolar e a depressão”, afirma o psiquiatra Humberto Corrêa. Para ele, o tratamento rápido com medicamentos evitaria as mortes.

Outra corrente de especialistas aposta no fator social do suicídio, em que os remédios apenas mascaram o problema e não mudam a realidade que produz na pessoa o desejo de se matar. “Dizer que as pessoas estão se matando porque são loucas, é resolver o problema de uma forma individual, e, assim, a indústria farmacêutica lucra, essa que, inclusive, produz medicamentos que têm como efeito colateral a ideação suicida”, afirma o psicólogo Nilson Berenchtein Netto. Contra o que ele chama de “ideologia em cápsulas” e “naturalização do transtorno psíquico”, Netto propõe “criar outra forma de sociedade, que não seja baseada no capitalismo, na exploração e na propriedade privada”.

Na mesma linha, a professora de psicologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que atua na rede de saúde mental Fernanda Marquetti arrisca dizer que, por ser visto como sintoma de doença psiquiátrica, a maior parte dos suicidas recebe esse diagnóstico, por isso o dado de 98,5%, coletado em hospitais.

“Mas o suicídio está no mundo. Pesquisas fora do hospital mostram que são pessoas comuns, donas de casa, trabalhadores. É uma manifestação de sofrimento humano, não de transtorno. Alguém que vive numa favela, trabalha oito horas, gasta cinco (horas) no ônibus, começa a beber e tenta suicídio, estava deprimido? Há uma banalização da depressão”, questiona. “Se tomar antidepressivo fosse eficaz, essa pessoa nunca tentaria suicídio”, conclui.

SUICÍDIO

Longo caminho para identificar vítimas e garantir tratamento

Despreparo de equipes médicas e de familiares, junto ao tabu, dificulta prevenção de mortes

Entre as poucas coisas que Kátia*, 34, se lembra do dia em que tomou veneno de rato para dar fim à própria vida e foi socorrida, estão os olhares de rejeição e a força com que as enfermeiras do hospital faziam a lavagem gástrica. “Havia um sentimento de revolta, uma falta de cuidado para injetar o carvão ativado na sonda. Elas tinham que salvar alguém que tentou se matar em meio a outras pessoas que não queriam estar doentes, sem entender que eu também estava doente emocionalmente. Mas, naquele momento, elas poderiam fazer tudo, nada iria me machucar mais”, descreve, com os lábios trêmulos, apertando as mãos, mesmo já tendo se passado 13 anos.

No Brasil, o suicídio é a terceira causa de morte por motivos externos, atrás de homicídios e de acidentes de trânsito. Passou a ser tratado como problema de saúde pública em 1990, e o número de casos tem crescido muito, inclusive entre os jovens. Mas o maior grupo de risco se refere àqueles que já tentaram se matar: a reincidência é bastante comum. Por isso, vários países adotam como principal estratégia de prevenção o tratamento desses casos. Porém, o tabu em torno do suicídio também impede que as equipes médicas saibam lidar com os que chegam ao hospital – não há formação específica no trato desse paciente e pouco se pesquisa nas universidades. Até hoje se ouve: “da próxima vez tenta direito”.

O Hospital de Pronto-Socorro (HPS) João XXIII, na capital, recebe por dia, em média, cinco casos classificados como TAE – tentativa de autoextermínio. A sigla era mais uma das formas de mascarar o problema. Um grupo de 18 psicólogas que atua na unidade tem levantado essas estatísticas há pouco mais de um ano e busca, além de usar o nome correto, sensibilizar a equipe médica na identificação e no acolhimento desses pacientes e familiares. Em breve, será aprovado protocolo de padronização do atendimento no HPS.

Em muitos prontuários não vem escrito “tentativa de suicídio”, mas “motivação externa”, que pode significar acidente, queda, intoxicação, queimadura, tiro, cortes e enforcamento. “Quando a família vem ou o paciente acorda, aparecem os indícios. É uma rotina diária”, explica a psicóloga do HPS Luciene Lopes. “Há pacientes que tentam a primeira vez e voltam na mesma semana. Quase sempre a família não tem recursos para entender o problema, acha que o parente (deprimido) está com preguiça ou, se tem um transtorno da alma, está imaginando coisas. Falar de suicídio é falar de sofrimento. A pessoa quer acabar com um sofrimento, não com a vida”, destaca outra psicóloga do grupo Luciana Santos.

Rede. Por se tratar de pessoas que querem se matar, é fundamental garantir acesso ao tratamento. “Nosso trabalho tem que ser muito criterioso para fazer o encaminhamento do paciente”, ressalta Luciana. A rede de BH é sobrecarregada, mas, segundo ela, não deixa de receber ninguém. Se é um caso mais grave, a vítima sai do HPS de ambulância para um dos 12 Centros de Referência em Saúde Mental (Cersams) da capital.

Quando o paciente é indicado à unidade mais próximo à residência dele, o município é comunicado pelo hospital, na intenção que se faça uma busca ativa pela família, mas isso nem sempre ocorre. No interior do Estado, a pessoa tem que procurar ajuda na cidade de origem – exceto em situações de crise, quando ocorrem transferências para estabilização nos leitos psiquiátricos dos hospitais Galba Veloso e Raul Soares, em BH. Uma das dificuldades é garantir o tratamento em municípios menores, onde muitas vezes nem há psicólogos.

*Nome fictício
TRANSFERÊNCIA

Falha na rede faz perder os poucos pacientes que chegam às unidades

Não existe em Belo Horizonte nenhum serviço público que se dedique ao atendimento e à proteção de pessoas que tentam se matar. O paciente é atendido no sistema comum. Um estudo desenvolvido pela psiquiatra Ana Carolina Colares no Centro de Referência em Saúde Mental (Cersam) da região Leste da capital, em 2015, avaliou como estava sendo feito o acolhimento pós-tentativa de suicídio. A maior falha encontrada foi na transferência dos cuidados dos pacientes dentro da rede.

O Cersam realiza consultas ambulatoriais, e uma parte dos pacientes fica durante todo o dia para tratamento – em cada uma das 12 unidades, a média diária de pacientes recebidos varia de 70 a cem. Ao todo, são 72 leitos para os que necessitam de hospitalização noturna. Mas a metade dos que chegam lá é encaminhada para acompanhamento nos postos de saúde, sendo que apenas um terço deles possuem psiquiatria – todos têm psicólogos.

“Estava ocorrendo de o paciente ser encaminhado para o posto apenas com um papel. Por estar num momento vulnerável, essa pessoa chega e se não tem consulta agendada, acaba desistindo. Perdia-se muita gente por não fazer a marcação ou não solicitar o retorno do paciente ao Cersam”, explica Ana Carolina. Sua pesquisa mostrou ainda que perguntas sobre a infância do paciente não eram feitas no atendimento, questões que poderiam indicar traumas.

Os casos de suicídio que chegam à rede de saúde são raros, por isso não se deveria perdê-los de vista. Segundo o manual de prevenção ao suicídio elaborado pelo Ministério da Saúde em 2006, a cada cem habitantes, 17 pessoas têm pensamentos suicidas. Desses, cinco planejam, três tentam e apenas um chega ao pronto-socorro.

PREVENÇÃO

Ligação que pode salvar vidas

Voluntários prestam apoio emocional, com atenção e sem julgamentos, e previnem suicídios

Quando eles perguntam “está tudo bem?”, não estão falando da boca para fora, fazem as vezes daquele que está do lado, mas se nega a ouvir, a olhar. Eles são voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV), que não por acaso tem também as iniciais da frase “Como Vai Você”, e estão prontos para uma escuta atenta, sem julgamentos e sem conselhos, dessas difíceis de achar nos dias atuais. Isso é prevenir o suicídio da forma mais simples e eficiente. Ao falar sobre seu sofrimento, a pessoa se ouve, reflete e é capaz de resolver seus próprios problemas. É nisso que o CVV acredita ao atender, em média, 38 usuários por dia apenas em Belo Horizonte, sem contar com os atendimentos online, que são feitos por voluntários de outras regiões e, geralmente, têm uma fila de espera de 30 pessoas.

Criado há mais de 50 anos, o CVV é uma das poucas entidades no país – entre públicas, privadas e filantrópicas – que trabalham diretamente na prevenção do suicídio. Na capital mineira, são 40 voluntários, mas precisaria de pelo menos o dobro para ter condições de atender 24 horas. Hoje, eles se revezam nos telefones, das 7h às 23h. Para se ter uma ideia do quão útil o serviço é, de janeiro a junho deste ano, foram 6.500 ligações – então, quando eles dizem que o telefone toca toda hora, essa também não é uma força de expressão.

Outras 292 pessoas ligaram e ficaram mudas. Ainda assim, eles ficam à espera do outro lado da linha. “Às vezes, a pessoa está tão carregada que ela não tem condições de falar”, explica o contabilista Lucas Silva, 49, há 11 anos voluntário do CVV. Apreciador de metáforas para explicar o seu pensamento, ele soltou a primeira delas logo no início da entrevista: “ao contrário do que disse Vinicius de Moraes, tristeza tem fim”. E, assim, ele nos recebeu com um agradável sorriso em uma salinha de paredes azuis da cor do céu, duas poltronas lado a lado – “para não constranger o outro, pois os olhos são o espelho da alma”, solta outra. É onde algumas pessoas são ouvidas, o que explica ter lá uma caixa de lenços e incenso sobre um aparador. Poucos, no entanto, fazem uso dessa opção (foram 57 no 1º semestre), a maioria prefere o anonimato físico do telefone. O que eles mais prezam é o sigilo.

Alguns ligam sempre.Uns querem desabafar, outros, simplesmente compartilhar um momento de alegria, sem ter com quem. São em datas como Dia das Mães, Natal e Finados que o telefone mais toca, e quando ocorrem mais suicídios. “Quem passa por isso não precisa de remédios, mas, de saber que é importante para alguém”, conta uma jovem de 22 anos, que diz ter tentado suicídio após uma depressão causada por problemas familiares. Para Silva, as pessoas estão vivendo no limite, buscando padrões e transferindo a felicidade para um bem ou para o outro, “mas você é a sua razão de viver”, considera.

Preparo. Os voluntários estão no CVV para conversar, mas fazem um curso inicial de dois meses e meio, no qual aprendem a facilitar o desabafo com empatia e a não dar conselhos. “Você já falou com alguém e ele te disse coisas que você não queria ouvir?”, pergunta o voluntário Silas Júnior, 50. Ele diz que o papel dele é respeitar a dor do outro, não importa o problema, o foco é no indivíduo. E Silva emenda com sua última metáfora: “Na tempestade, a pessoa só quer que a porta em que ela está batendo se abra para sair da chuva”.

Prevenção

Reduzir em pelo menos 10% a taxa de suicídio até 2020 é uma meta mundial. No entanto, o Ministério da Saúde publicou, há dez anos, diretrizes para a prevenção do suicídio com estratégias para o Brasil, mas nunca foram totalmente colocadas em prática. Segundo o psiquiatra Humberto Corrêa, não se investe em campanhas preventivas nem há atuação com públicos de risco como adolescentes grávidas, populações carcerária e indígena, por falta de vontade política. Tampouco há divulgação direta em órgãos públicos.

Suicídio visto como um percurso construído, e não como ato impulsivo

Um grupo de pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), chamado Percurso Suicida, estuda o caminho das mortes autoprovocadas como algo que vai sendo construído ao longo da vida, por meses ou até anos, e culmina com o momento decisivo. “A pessoa vai elaborando essa ideia por não conseguir encontrar outra saída para o sofrimento”, explica a psicóloga e professora da Unifesp Fernanda Marquetti. Essa ideia contrapõe estudiosos que acreditam que o suicídio é um ato impulsivo, dentro dos sintomas dos transtornos psiquiátricos.

“Quando pesquisamos o que mudou no cotidiano das pessoas que tentaram suicídio, era evidente que tiveram inúmeras transformações. Elas abandonavam atividades, encerravam situações financeiras, deixavam mensagens. Mesmo os que querem aproveitar tudo antes de morrer, mostram um claro planejamento. Muitas vezes, há uma grande lucidez nessa decisão, que difere muito de pensar no suicídio como ato de loucura”.

Expediente

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