Recuperar Senha
Fechar
Entrar

Transposição do descaso

Dom Cappio defende que obras sejam interrompidas

"Em vez de repensarem, reverem os orçamentos, peguem o dinheiro e façam o que deve ser feito", diz o religioso

Enviar por e-mail
Imprimir
Aumentar letra
Diminur letra
PUBLICADO EM 11/10/13 - 03h00

O senhor ainda é contra a transposição?Por quê? Quando foi anunciado o projeto de transposição de águas do rio São Francisco, nós ficamos muito felizes porque, pela propaganda – que depois, descobrimos ser enganosa do governo federal –, o objetivo do projeto era levar água para quem tem sede. Ficamos muito felizes porque era tudo o que queríamos, que o semiárido brasileiro fosse abastecido de água. Justamente pela euforia do projeto, nós fomos conhecê-lo de perto. E qual não foi a nossa surpresa quando vimos que, bem ao contrário do que aquilo que a propaganda do governo dizia, o projeto não tinha como objetivo dessedentar homens e animais e garantir água para as comunidades carentes de água. Mas o objetivo prioritário do projeto era segurança hídrica dos projetos agroindustriais. Então, era um investimento público subsidiando as iniciativas do agronegócio principalmente. Assim, a partir daí, nós tentamos, de todos os meios, manter um diálogo bastante aberto e bastante real da situação do rio, da situação do povo e do projeto imenso a ser instalado. Provocamos inúmeras vezes o diálogo com o governo federal, que sempre nos foi tolhido. Começamos aquela iniciativa ao ver que o projeto andava, como um grito desesperado. Quem sabe um ato de loucura pudesse chamar a atenção do Brasil e do mundo, diante de um absurdo desses? Dizíamos que era uma obra eleitoreira pela configuração dela, víamos que, em nível de técnica, de investimentos econômicos, de consequências econômicas, jurídicas e ecológicas, era um projeto impossível e que, ali, o único objetivo eram realmente as eleições. E foi justamente o que aconteceu. O projeto foi a todo o vapor até as eleições em que o Lula fez a sua sucessora e, ali, parou.


O senhor ainda tem alguma esperança de diálogo para que a água chegue a quem mais precisa? É interessante que aqueles do povo que mais apoiavam o projeto foram os primeiros a ficar decepcionados. À medida que a obra foi caminhando, os primeiros prejudicados foram aqueles que achavam que seriam beneficiados. Eu sempre tive a certeza de que esse projeto não chegaria ao fim. Desde aquela época, já na nossa conversa com o então presidente Lula, e depois, quando iniciamos o segundo jejum, nós já tínhamos as alternativas. A Agência Nacional de Águas (ANA) construiu o Atlas do Nordeste. Esse atlas é um conjunto de projetos de abastecimento hídrico das comunidades isoladas do semiárido brasileiro. Eu digo que é uma obra-prima, no sentido de abastecimento hídrico das comunidades carentes. É incrível a abrangência do projeto da ANA, que é do governo federal, que foi do governo Lula e agora é do governo Dilma. Por esse conjunto de projetos, todas as comunidades carentes seriam abastecidas através de dutos – pelos rios permanentes da região e pelos açudes maiores de todo o Nordeste brasileiro, que tem o maior conjunto de açudes do mundo (são mais de 70 mil). Então, essa era uma alternativa do próprio governo. Então, nós dissemos ao Lula: “Presidente, o senhor tem um projeto que é essencialmente econômico e tem outro projeto que é essencialmente social. Um projeto que visa garantir segurança hídrica para os projetos econômicos e um outro projeto ecológico de atendimento às comunidades carentes”. Por isso é que até hoje todas as questões relativas à transposição não foram julgadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Se fossem, de imediato, ver-se-ia que é um projeto inconstitucional porque, numa região de seca, prioriza o uso econômico da água, e não o uso social dela.

Ainda não está claro para as pessoas como a água dos canais chegará às casas. É nesse sentido que nós dissemos, desde o começo, que toda a propaganda do governo é enganosa. Tanto é que, na nossa audiência pública no Senado Federal sobre a transposição, o então ministro da Integração Nacional Geddel Vieira Lima disse em alto e bom som, diante do Brasil inteiro – porque era transmitido por uma rede de rádio e de televisão –, diante de todos os senadores e de toda a plateia ali presente, que o projeto de transposição não era para levar água para o povo. Era para garantir a água para os projetos econômicos. Ele falou em alto e bom som, com todas as letras. E tudo isso que a televisão mostra na propaganda oficial, de que é uma cuia d’água para quem tem sede, é mentira. Então, agora, diante dessa seca terrível que estamos vivendo – são três anos sem chuva. Devido à irresponsabilidade de um governo, esse povo está todo carente de água por uma opção errada no investimento público em recursos hídricos, porque, se o dinheiro que foi investido na transposição para gerar o nada tivesse sido investido para levar a água para as comunidades carentes, a partir das fontes permanentes de água, hoje não teríamos esse quadro. Agora, por exemplo, de última hora, vocês passaram em Irecê para chegar aqui, a Barra. A adutora ali foi feita a toque de caixa porque toda a região de Irecê, que é produtora de grãos, estava totalmente ressequida. Já podia ter sido feita há muito tempo.


São as famosas obras que não dão votos porque nem sempre conseguem visibilidade, ao contrário da transposição, que tem um tremendo canal? Se for consultar uma empresa, um engenheiro ou pessoas que vão abordar a dimensão técnica da obra, elas vão dizer que a primeira coisa que tinha que ter sido feita eram as elevatórias porque o rio sobe mais de 300 m de altura. Só que elas (as elevatórias) não são interessantemente visíveis. Não dão voto e exigem uma tecnologia maior, investimentos maiores, empresas mais bem-equipadas. Então começaram pela abertura dos canais, o que foi feito pelo Exército. Então, isso dá visibilidade – eu já sobrevoei a obra –, e dizem que da lua se vê. Dizem. Eu nunca fui à lua para saber se é verdade. Mas, lá de cima, do avião, eu vi aquele mundo de canal. Então, eles se preocuparam mais com a visibilidade do projeto do que propriamente com a tecnologia. Tanto é que, depois que foram feitos os canais, não havia as elevatórias, e o canal, no sol, acabou rachando.

Diante desse quadro de abandono e deterioração, qual seria a saída? Eu tenho uma solução ,sim. Eu digo para vocês, para todos que quiserem me ouvir e para o governo federal. Parem de ser loucos, parem com isso. Reconheçam o erro. É um erro de princípio. Está errado. Em vez de repensarem, reverem os orçamentos, parem com isso e peguem esse dinheiro e façam o que tem que ser feito: levar água para o povo. Essa é a solução. Reconheçam o erro e recomecem de outra maneira.


A solução, então, seria o abandono dessas obras? Nessa configuração, sim. Seria o abandono dessa obra. Você pode imaginar a qualidade da água que vai chegar, a situação de conflito permanente com aqueles que moram à beira dos canais. A Universidade do São Francisco, sediada em Petrolina (PE), tem um departamento de botânica que se ofereceu para fazer o replantio dos canais, com plantas nativas para recompor todas aquelas matas. A resposta da transposição foi a seguinte: “Não, nós já licitamos o replantio com as empresas que fizeram os canais e que fizeram o desmatamento. Nós já refizemos o projeto de replantio com as próprias empresas que fizeram o desmatamento”. Veja, quando uma universidade se propõe a fazer de maneira inteligente, com tecnologia e conhecimento de causa, de solo, de clima, o replantio para, pelo menos, salvar a mata nativa na região desmatada, o projeto diz que não e que já licitou com as próprias empresas. Mas eles vão plantar eucalipto e sabe Deus o quê. Então, é uma obra concebida em vista única e exclusivamente do econômico, sem nenhuma dimensão social, ecológica e de ética e de respeito pelo homem.


Qual o diagnóstico que o senhor faz em relação à revitalização do rio? Em termos de revitalização, que foi um dos pontos acordados, nós temos aqui em Barra, sediado aqui em Barra, de propósito aqui, debaixo das minhas barbas e dos meus bigodes, um contingente do Exército com o objetivo de fazer a revitalização das margens. Por esses dias, vieram aqui os generais para saber como estão esses trabalhos. Existem alguns investimentos feitos no sentido de recuperação de barrancos. Mas isso, como eu disse para eles, é o seguinte: tudo o que se faz por um moribundo, a gente agradece. Até uma gota de água que se dá para alguém que está no estertores da morte, Deus lhe pague. Tudo que se faz para quem está morrendo é um benefício, em termos de revitalização do rio São Francisco. Mas, nem de longe, atinge as reais necessidades de uma verdadeira revitalização. Porque a verdadeira revitalização deveria preservar as matas das fontes das nascentes – tanto da calha principal quanto das calhas dos tributários. Quando a gente fala do rio São Francisco, a gente não se atém apenas à calha principal, mas a todos os afluentes e a todo o vale do rio. São centenas, milhares de pequenos riachos, rios médios e rios grandes. Então, é preciso garantir as fontes desses rios, das lagoas, garantir os lençóis freáticos dos pequenos, médios e grandes cursos d’água que abastecem o rio São Francisco. O primeiro ponto a ser atacado por um objeto sério de revitalização é esse. O segundo ponto seria garantir a purificação da água através da contenção dos esgotos sanitários de todas as cidades, vilas e aldeamentos de todo o vale e também de dejetos químicos. A contenção das encostas é importante, mas só ela não garante nada.


O senhor faria uma nova greve de fome, mesmo após os dois outros protestos não terem gerado nenhum resultado prático? Não. As greves de forme não adiantaram em termos práticos de contenção do projeto, mas adiantaram, sim, no sentido de criar uma consciência. E é por isso que vocês estão aqui agora. É porque se criou uma consciência no vale inteiro, no Brasil e em toda parte do mundo. Eu recebo jornalistas do mundo inteiro aqui para falar da transposição do rio São Francisco. A greve de fome foi como um grito e esse grito teve eco.

Rádio Super

O que achou deste artigo?
Fechar

Transposição do descaso

Dom Cappio defende que obras sejam interrompidas
Caracteres restantes: 300
* Estes campos são de preenchimento obrigatório
Log View