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Transposição do descaso

Sem água, mulher fica sem banho por 8 dias 

Caminhão-pipa não chega a todas as propriedades rurais de Mauriti, no Ceará, dificultando vida do sertanejo

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PUBLICADO EM 10/10/13 - 03h00

Sertão nordestino. Para quem mora na cidade grande, tomar um simples banho é algo mais do que trivial. Para quem vive a seca em seus piores e mais dramáticos momentos, uma chuveirada é um luxo. Aliás, chuveiro é quase uma palavra desconhecida para alguns sertanejos. Tomar banho é um sonho de consumo para alguns, tal qual um celular de última geração é um objeto de desejo de urbanoides das metrópoles.

Em Mauriti, no sertão cearense, um simples banho pode-se esperar oito dias para ser tomado. Banheiro em casa é um luxo inimaginável. “Eu, aqui, só tenho água para beber e cozinhar. Se eu não beber e cozinhar, morro de sede e de fome. Então, meu irmão, fico oito dias sem tomar um banho”, conta, com naturalidade, a agricultora aposentada Antônia Assis Ramos, 76, conhecida nas redondezas como dona Nôzinha.

A mulher é um expoente daquela porção da zona rural de Mauriti já bem perto do limite com a cidade paraibana de Monte Horebe. Água de caminhão- pipa não chega à casa da aposentada. Com isso, o líquido é buscado numa mula que atende pelo nome de Jumenta. “Mas a bichinha está magrinha que só ela. A Jumenta está velhinha e mal aguenta carregar a água, meu filho”, conta dona Nôzinha na sala de casa, repleta de imagens de santos. Aos 76 anos, apesar de alguns problemas de saúde, a idosa tem uma vitalidade maior do que muita a de gente mais jovem.

Nos últimos tempos, diante da falta de água que vem se acentuando em Mauriti, dona Nôzinha tem ido à casa da filha, em outro distrito, para conseguir se banhar. “Eu estava até conversando com a minha filha aqui, e ela me chamava para tomar um banho na casa dela. Mas é bem longe. E eu já estou velha. Minha saúde já não anda tão boa para ficar saracoteando por aí”, reclama. E prossegue dona Nôzinha: “Banho bom é aquele que a gente toma, lava os cabelos com xampu, usa sabão. Aqui, eu limpo mais ou menos o corpo. Se usar sabão, não adianta, fica só o casco”, conta ela, falando do banho como uma grande realização. “Banheiro? Banheiro é luxo. Aqui, banheiro é debaixo do pé de coco, rapaz”, diz, sorridente.

Apesar de toda aquela dificuldade e da secura da vida naquela região, quando questionada se sairia de suas terras, a resposta de dona Nôzinha é rápida e assertiva. Chega a ser dura. “Quero sofrer e morrer aqui. Nasci aqui. Não saio daqui, meu filho”, afirma ela, com um sorriso nos lábios que contrasta com aquela afirmação firme e decidida de uma sertaneja que passou todos os seus dias no mesmo pedaço de terra onde nasceu e que herdou dos pais.

DRAMA. Dona Nôzinha conta que passou sede uma vez na vida. “Em 1970, faltou água para beber. Foi um ano difícil, mas passou. E a vida é assim, vai passando e a gente vai vivendo”, filosofa a mulher. “O que não pode faltar é a fé em Deus e em meu ‘Padim Ciço’”, diz ela, olhando para o céu aberto e fazendo alusão ao padre Cícero, figura venerada por aquelas bandas. Padre Cícero é tão querido ali que, à beira das estradas cearenses, o que mais se vê são oratórios dedicados ao religioso, que, segundo acreditam os nordestinos, é milagreiro.

Se pudesse prever as condições do tempo com precisão, dona Nôzinha já saberia o que fazer. “Botaria uma rocinha aqui. Gosto é de trabalhar. Ganhei minha vida assim. Só parei porque não adianta mais plantar aqui, na terra seca”.

Para lavar roupas, o jeito é ir a um açude longínquo, a quase uma hora de caminhada. O açude ainda tem alguma água. “Até me ofereceram para lavar roupa numas casas aqui mais ou menos perto aqui do meu pedaço de terra, mas não aceitei. Fico sem jeito, envergonhada. Junto minhas roupas. É feio ir na casa dos outros para isso”, diz ela, que carrega as trouxas na cabeça até a represa.

Sobre as obras da transposição, a esperança anda rareando. “Já prometeram tanto que não acredito mais. Mas tenho fé em Deus. E isso é o mais importante. Quem não tem fé não é vivo”, vaticina dona Nôzinha.

46 mil é o número de habitantes que a cidade de Mauriti tem atualmente; desse total, metade mora na zona rural.

 

Rádio Super

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