Ao acolher pacientes terminais, equipes de Cuidados Paliativos mostram que cuidar é tão importante quanto curar e proporcionam que se viva até o fim com dignidade
Textos de Joana Suarez
Fotos de Fernanda Carvalho e Moisés Silva

Cuidados paliativo

O CUIDAR é conjugado quando não há mais cura

Profissionais da saúde se dedicam a dar qualidade de vida a pacientes que aguardam a morte

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“Triste é, mas não é todo mundo que tem essa oportunidade de o médico vir em casa. Estou com esse privilégio”, comentou Ângela sobre a equipe de Cuidados Paliativos; no sofá, técnica de enfermagem e psicóloga conversam com ela
PUBLICADO EM 27/07/16 - 03h00

Quando sobra pouco, a vida torna-se preciosa. Um jovem de 35 anos, desolado com um câncer raro e incurável na pleura, teve alta do hospital e foi para casa. Passaram-se apenas dois dias, e precisou retornar à unidade, pois o tumor piorara. Mas emocionou a equipe médica com seu relato de gratidão por ter conseguido, nas poucas horas sem regras institucionais, receber mais de 60 visitas e rever a árvore em frente a sua casa – faleceu menos de três meses depois. “A gente não dá alta para o paciente morrer em casa, a gente dá alta para ele viver”, diz o geriatra Fabiano Moraes Pereira, mostrando como sua atuação como paliativista do Hospital das Clínicas de Belo Horizonte imprime nele um olhar gentil sobre a finitude. Ainda incipiente nas unidades de saúde de Minas Gerais, os Cuidados Paliativos constituem uma área em que nunca se diz a um doente incurável que não há mais nada a ser feito, já que até o fim é vida.

Apesar de inevitável, a morte não precisa ser ruim – ela pode ser digna. Esta é a busca diária dos profissionais paliativistas: afastar o sofrimento e a dor para que a pessoa em fase terminal possa desfrutar os dias que lhe restam em casa, perto de suas lembranças e familiares. É uma equipe que quer saber o que é mais importante para o paciente e aquilo que mais o incomoda. Não pensam em como “curar”, são estudiosos do “cuidar”.

Desejo

Somos finitos. Nenhuma ciência é capaz de transpor essa condição. Mas, nos últimos 30 anos, médicos e sociedade voltaram-se para os avanços tecnológicos na saúde, “crentes de que sempre há uma solução, mais um exame e uma intervenção a serem feitos”, conta Beatriz Birchal, presidente da Sociedade de Tanatologia e Cuidado Paliativo de Minas Gerais (Sotamig). Definitivamente, não é possível resolver tudo, pensa ela. “Continuamos mortais, e chega uma hora em que temos apenas que cuidar. Não é só tentar evitar o fim, é saber qual a melhor maneira de abordá-lo, mas pouca gente está atenta a isso”.

A pesquisa Últimos Pedidos, realizada em quatro grandes países – Estados Unidos, Brasil, Itália e Japão –, mostrou que os desejos dos doentes terminais são quase sempre desconhecidos ou ignorados por pessoas próximas. Apresentada em abril deste ano pela revista britânica “The Economist”, em parceria com a fundação Família Kaiser (um centro de estudos em saúde), a pesquisa concluiu que mais de um terço dos entrevistados não sabiam o que o parente queria no fim da vida, como, por exemplo, assistir a um evento especial, como um casamento, mesmo que deixar o hospital fosse um risco.

Entre 12% e 24% dos que conheciam os desejos dos entes queridos disseram que tais vontades não foram realizadas. Mais ainda, entre 25% e 38%, afirmaram que os pacientes tinham experimentado dores desnecessárias em estágios terminais. A maioria classificou a qualidade dos cuidados no fim da vida como “razoável” ou “ruim”.

A psicóloga oncológica e paliativista Francine Portela menciona que outros estudos internacionais revelam também que pessoas que recebem cuidados paliativos vivem mais tempo, com menos dor e depressão do que os que são submetidos ao tratamento padrão. Os primeiros “ficam ao lado de quem desejam, realizando sonhos, coisas importantes”, explica.

As preferências do paciente e a prevenção da dor não são levadas em consideração pela maioria das unidades de saúde, que recebe recursos por procedimentos, faz intervenções invasivas, tentando esticar a vida e, sem sucesso, desampara o doente que “não tem mais jeito”.

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Cuidados paliativo

O CUIDAR é conjugado quando não há mais cura
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"Não podemos mudar o ponto final de uma doença crônica avança (a morte), mas hoje já podemos mudar o caminhar, oferecer um tratamento digno, com controle adequado da dor, para aquela pessoa que não deixou de ser alguém por ter o corpo limitado"
Francine Portela
Psicóloga oncológica

Cuidados

Registro profundo sobre a vida e a morte

Proporcionar a Ângela qualidade de vida prolongou seu caminho para a finitude por pelo menos seis meses além do esperado

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PUBLICADO EM 26/07/16 - 16h39

Ângela Batista Amaral morreu de câncer, aos 55 anos – nove meses depois de ser “desenganada” com um tumor que se espalhava e não lhe deixaria viva por muito tempo. Sem perspectiva alguma de cura, passados 12 anos de tratamento, ela começou a ser atendida por uma equipe multidisciplinar de Cuidados Paliativos do Hospital Alberto Cavalcanti (HAC), na capital mineira.

Os profissionais visitavam-na em casa toda semana para controlar os sintomas físicos, emocionais e sociais da doença, para ouvir e oferecer conforto a ela e à família. “Eles fazem o serviço mais bonito do hospital, cuidam de relações familiares, ensinam a tratar em situações precárias”, falou um motorista do HAC que transporta a equipe.

Proporcionar a Ângela qualidade de vida prolongou seu caminho para a finitude por pelo menos seis meses além do esperado (a expectativa era de três meses). Ângela viveu 270 dias em casa, despedindo-se, ajeitando-se, agradecendo a cada novo acordar. A reportagem de O TEMPO acompanhou suas derradeiras 30 semanas, um registro profundo sobre a vida e a morte narrado nas próximas páginas deste caderno.

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Cuidados

Registro profundo sobre a vida e a morte
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"Se você se aproxima do paciente, cuida dele, toca nele sem medo, com cuidado, ele sente confiança e te conta coisas que nunca contou para ninguém, e a gente se torna mais humano. Ajudamos a encarar a doença e a dar qualidade de vida"
João Samena
Enfermeiro paliativista do HAC

Cuidados Paliativos

A MUDANÇA do olhar para o fim da vida ainda é tardia

O Brasil precisaria de ao menos 600 equipes de Cuidados Paliativos, mas tem apenas 130

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PUBLICADO EM 28/07/16 - 03h00

“Não some, não, vocês são uma gracinha”, despediu-se Alair Conrado, 55, das médicas que foram até ela não para lutar contra a morte que se aproximava, mas para aliviá-la. Entraram no quarto, chegaram pertinho do rosto de Alair, ajoelharam-se para ficar mais próximas, perguntaram sobre a dor e se ela tinha dormido bem. Pelas risadas, nem parecia ter ali uma paciente aguardando o fim, que chegaria sete dias depois. A equipe de Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas (HC) de Belo Horizonte atende em todos os setores onde há enfermos sem chance de cura, que não são transferidos para um lugar específico para que não seja estigmatizado como “ala da morte”. Até porque mais da metade dos pacientes consegue alguns dias de alta para viver em casa antes do suspiro final.

Esse cuidado com quem está morrendo é oferecido em menos de 4% dos hospitais de Minas Gerais. São 21 unidades que dispõem do atendimento, segundo levantamento atualizado da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), em um universo de 541 hospitais públicos e mistos no Estado. “Há uma necessidade de 600 equipes na rede pública de todo o país, mas temos 130”, afirmou o presidente da regional Sudeste da ANCP, José Ricardo Oliveira. A estimativa dele é baseada no número de mortes por doenças crônicas que deveriam ter sido assistidas pela equipe paliativista.

Contudo, a medicina começa a ter um olhar mais sensível aos pacientes terminais, acredita Oliveira, que coordena o único serviço oferecido na rede suplementar de saúde de Belo Horizonte, na Unimed. Segundo ele, a demanda – diretamente da família ou encaminhada por médicos da rede – tem crescido. “Existe cuidado paliativo desde 1960 na Inglaterra e em países de Primeiro Mundo. A sociedade tem pedido uma atenção diferenciada aos familiares que estão passando por esse momento”, destaca.

Enfermaria

Nos corredores do HC, no primeiro dia em que acompanhamos a rotina dos cuidados paliativos, visitamos quatro pacientes. A equipe pega na mão de cada um, observa do dedão do pé ao fio de cabelo, repara como está o lençol, conversa com a família – diálogo que muitas vezes se revela mais eficiente que qualquer tecnologia. No fim da tarde, depois que saímos de lá, a médica Camila Alcântara nos comunicou que o último paciente que vimos tinha acabado de morrer. Veio a imagem do seu olhar fixo de manhã e de sua mulher ao lado, agoniada, com o respirador que o incomodava. Assim que deixamos o leito, a médica apressou-se em encontrar algo que o fizesse sentir-se melhor. “Era um homem forte”, disse.

Camila já se acostumou às perdas diárias; ela acredita que vela as pessoas em vida. A residente de enfermagem Raquel Souza, 25, precisou de dois meses na equipe para descobrir a grandiosidade desse trabalho: “No início foi difícil ver um paciente morrer depois de 18 dias intensos cuidando dele. Agora encontrei a beleza disso: está em dar conforto e cuidado nesses últimos dias”.

Ao final da manhã de visitas, o grupo reúne-se para discutir cada caso e ver o que pode ser feito com os sintomas físicos e sentimentais difíceis de controlar. Na reunião que presenciamos, eles relataram sobre um homem em estágio terminal, que, ao ter uma gangrena na perna (quando o sangue para de circular), viveu uma semana vendo seu membro morto, pois não havia como operar. Foi desesperador para a equipe, habituada a confortar as situações mais complicadas. Mas viram o paciente revoltar-se e depois aceitar a morte com delicadeza.

O desafio maior, porém, é plantar a semente do cuidado paliativo em todos os médicos que precisam aprender a falar para seus pacientes que eles estão morrendo. “Se um cardiologista acompanha há 20 anos uma pessoa, não tem que passar para nossa equipe que nunca a viu. Têm muitos médicos paliativistas por instinto”, comentou o geriatra Fabiano Pereira.

Não há nenhuma disciplina nos cursos de medicina e enfermagem que os prepare para lidar com a morte. Melhorar a comunicação entre pacientes e médicos é importante para que os doentes terminais tenham mais controle sobre suas vidas e os profissionais evitem procedimentos invasivos e inúteis.

Camila afirma que tem ocorrido um movimento maior de instituições pedindo para treinar os profissionais, mas que ainda está longe do ideal. “Muitos veem a morte como um fracasso, não sabem lidar com a frustração de não curar”, afirmou ela, citando que um residente de neurologia fugiu da conversa com a família do paciente ao não ter “sucesso” na cirurgia. “Ele disse que foi uma exceção, que a neurocirurgia sempre cura”.

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Cuidados Paliativos

A MUDANÇA do olhar para o fim da vida ainda é tardia
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"Nós somos finitos, os tratamento são finitos, mas as pessoas se preparam muito mal para morrer, para perder alguém. O paciente está sofrendo, e esse sofrimento é perpetuado (no hospital) sem ganho nenhum. O fim virá"
Beatriz Birchal
Presidente Sotamig

Cuidados paliativos

Antes de partir, conseguiu respirar aliviado

Na véspera de sua morte, Egilmar admitiu que não estava suportando mais

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Egilmar
Egilmar ao lado dos irmãos, no hospital, no reveillon de 2017
PUBLICADO EM 26/07/16 - 17h44

Depois de uma primeira alta e posterior recaída, mais uma vez o pedreiro Egilmar Afonso Fernandes, 35, conseguiu voltar para casa. Foi ele quem levantou cada tijolo do imóvel, que aproveitou por pouco tempo. A família adaptou o quarto e a vida para tê-lo por perto e cuidou de Egilmar por dois meses.

Egilmar ainda conseguiu dirigir o carro que havia comprado pouco antes

EgilmarA equipe paliativista do HC deu todas as instruções para tornar isso possível, escreveu uma lista de remédios com os horários – que ficava colada na parede da cozinha –, ensinou como alimentá-lo pela sonda, como lavá-lo. Os irmãos viraram “enfermeiros”. “Assim, ele tinha mais chance de se recuperar. No hospital, poderia pegar uma infecção. Ele ficou tão feliz quando soube que viria para casa, o olho brilhou. A gente tenta ser forte, mas dessa vez eu chorei”, comentou o irmão Vicente Fernandes, 36.

Na véspera de sua morte, Egilmar admitiu que não estava suportando mais. Teve uma crise de dor que durou 20 minutos. Enquanto ele rezava, a equipe paliativista angustiava-se com a cena, sem conseguir aliviar seu sofrimento.

Os médicos ficaram, então, junto dele por mais de duas horas, até que ofereceram a sedação. “Mas eu vou acordar?”, perguntou ele. Consciente, ouviu que ficaria sonolento e que poderia evoluir a óbito, mas aceitou. Abraçou cada um da equipe. “Todos choraram, foi mágico. A gente tirou a sonda, ele abriu os olhos, respirou profundamente. Levou a mão no nariz e disse: ‘Meu Deus, não lembrava mais como era respirar sem a mangueira’”, narra a médica Camila Alcântara. Egilmar pediu para tomar um suco, deu um gole de canudinho, sorriu e disse que tinha sido o melhor suco de sua vida... e se foi horas depois.

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Cuidados paliativos

Antes de partir, conseguiu respirar aliviado
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PUBLICADO EM 27/07/16 - 20h40

Números pelo Brasil

O Diretório Brasileiro de Cuidados Paliativos possui um banco de dados sobre os serviços no Brasil onde estão registradas:

80 Equipes de Interconsulta - o hospital possui uma equipe multiprofissional de Cuidados Paliativos que atende os pacientes em seus leitos a pedido de outras especialidades;

35 Enfermarias - o hospital mantém uma área específica, com leitos, para internação de pacientes em Cuidados Paliativos, com equipe própria multiprofissional, liderada por médico paliativista;

59 Ambulatórios - o hospital possui área de assistência ambulatorial em Cuidados Paliativos, sem internação, realizada por equipe multiprofissional;

51 Assistências domiciliar - o hospital mantém equipes multiprofissionais que visitam os pacientes em suas casas;

22 Hospitais-dia - o hospital mantém atendimento em Cuidados Paliativos de um dia de internação para algum procedimento mais urgente. Está ligado ao ambulatório;

12 Hospedarias - o hospital possui uma casa de internação, na qual realiza assistência em Cuidados Paliativos;

10 Hospitais Especializados - a instituição é especializada e atende exclusivamente Cuidados

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A vida de Ângela

UMA VIDA de 55 anos de dedicação ao outro

Ângela foi doméstica, cuidou de sítio, de idosos e de crianças... até que, no fim, precisou ser cuidada

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Dona Ângela
Ângela teve poucas oportunidades de viajar para fora de BH, sua vida era mais em casa, adorava plantas
PUBLICADO EM 28/07/16 - 03h00

Sempre que chegávamos para visitá-la, Ângela Batista Amaral, 55, estava no sofá, meio deitada, meio sentada. Pequenina e magrinha, pesando cerca de 30 kg, não preenchia metade do estofado. Não abria mão de ficar arrumada, cheirosa, com um lenço bonito escondendo os cabelos crespos, curtos e falhados após inúmeras sessões de quimioterapia. Aguardava-nos ansiosamente – o combinado era às quintas-feiras, mas na segunda já começava a perguntar para a filha quantos dias faltavam e mandava preparar o lanche. Ao chegarmos perto da porta, sempre aberta, Ângela já lançava um sorriso doce, que repuxava o nariz preso ao tubo de oxigênio, e nos acolhia com um abraço afável, apesar do medo de machucar as feridas do tumor no seio direito. “Vocês demoraram demais”, dizia, brincando, com sua vozinha fraca em meio ao barulho da sala cheia de filhas e netos. “Tenho vontade de conversar alto, não consigo mais”.

Até os 42 anos, Ângela viveu no aglomerado Cabana do Pai Tomás, na região Oeste de Belo Horizonte, de onde guardava fortes lembranças de tempos difíceis, mas felizes. “Já teve vez de eu ir a lugar comunitário pegar sopa porque não tinha o que comer. Era muita luta, mas uma época boa, a família era mais unida”, recordava, dizendo que queria ser velada no Cabana. “Eu vim foi de lá, meu destino é lá. Quem dera eu pudesse escolher”. Depois que adoeceu, ficou tempos sem voltar ao bairro.

Doze anos antes de morrer – praticamente o mesmo tempo pelo qual lutou contra o câncer –, saiu do Cabana ao receber do governo um apartamento de 40 m² no conjunto Águas Claras, na região do Barreiro, porque morava em área de risco. Nos “predinhos”, como dizem os moradores, Ângela também era querida por todos como uma mãe. Com seu jeito de “adotar” as pessoas, já na sétima das 27 visitas que fizemos, ela incluiu a mim e a fotógrafa Fernanda Carvalho no seu rol de “crias do coração”.

Temos um grande pesar de não tê-la conhecido antes de ela enfrentar sua fase mais fraca, embora tenha projetado cada cena narrada dessa época, como se estivéssemos lá. Dizem que ela era forte, mais encorpada, um tanto brava, mandona, mas bem-humorada e extremamente generosa. Que gritava muito, antes de a rouquidão chegar junto com a falta de ar quando o câncer havia atingido o pulmão. “Escutei minha voz em um áudio que mandei no celular e nem acreditei que era minha”, contou. Que, se não estava em casa fazendo comida, estava do lado de fora da casa cuidando das plantas no corredor, varrendo, conversando com a vizinha, sempre ativa, procurando algo a fazer.

Ângela começou a trabalhar como empregada doméstica aos 15 anos, foi caseira de sítios com o marido, cuidou de idosos, manteve uma creche improvisada em casa para ajudar a criar os filhos dos vizinhos. Viveu para cuidar do outro por mais de 30 anos. Até que, no fim da vida, recebeu os cuidados que mais precisou. Em seus últimos nove meses, foi atendida pela equipe paliativista do Hospital Alberto Cavalcanti, que fez com que todos a sua volta, inclusive a equipe de reportagem, preocupassem-se em fazer com que cada instante dela significasse muito.

Passado

Não poder mais dedicar-se ao outro amargurava Ângela. Como teria levado esse golpe da vida, depois de tanto cuidar? Ela mal conseguia aguentar-se de pé para ir ao banheiro, mas lembrar-se de tudo que havia feito até seu meio século de idade lhe enchia o peito, já sem fôlego. “Gostava de trabalhar em casa que tinha criança. Eles (filhos dos patrões) vinham dormir comigo no cantinho da minha cama, no quarto das empregadas”, contou, orgulhando-se de um carinho que se estendeu até 20 anos depois de deixar o emprego.

Ângela só parou de trabalhar quando descobriu que estava doente e já não tinha forças para carregar o peso da senhora de que cuidava. “Era muito pesado. Mas sempre trabalhei, tomava conta de sítio. Com um barrigão de oito meses, ainda pegava na enxada, eu e Divino (marido)”, contou.

Com Valdivino Francisco Amaral, 53, Ângela teve quatro filhas, hoje com 18, 22, 24 e 26 anos. Completaram 26 anos de casados seis meses antes de ela morrer. “Fomos muito felizes, por muitos anos, depois foi esfriando. Apesar de tudo, eu gosto muito dele, é o pai das minhas quatro princesas. Até hoje ele fala que me ama, mas eu sou fria demais”, confessou, lembrando que já fazia seis anos que ela e Divino não dormiam mais juntos. Assumiu que a doença levou um pouco de suas vontades. “O povo fala que homem faz falta; para mim, não”, revelou. Até o café, antes um vício, passou a ter um gosto ruim.

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A vida de Ângela

UMA VIDA de 55 anos de dedicação ao outro
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A reportagem

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Fernanda Carvalho
Com as filhas, os netos e a vizinha companheira, Ângela já parecia afastar-se da cena
PUBLICADO EM 26/07/16 - 18h27

“Eu vou ficar famosa!”, disse Ângela quando soube que sairia no jornal. “Famosa nesse momento ruim, doente, né?”, completou em seguida. Mas aceitou nossa proposta de acompanhar seu tratamento até o fim. Quando tiramos a primeira foto dela com os netos, ela falou que ainda não tinha registro com o mais novo (de 1 ano) no colo. Quis sair bonita, pediu para passar batom. Deixamos a primeira visita aflitos por conhecer alguém que morreria dali pouco tempo, mas a verdade é que todos vão morrer, e muitos se foram antes dela. Para que fosse mais fácil lidar com a situação, se é que era possível, buscamos pensar que a matéria poderia ser sobre a cura, e não o fim.

Incêndios

A enfermidade de Ângela, por vezes, ficava em segundo plano diante dos problemas da família. Um deles foi quando houve um curto-circuito no apartamento, em setembro de 2015, queimando todos os móveis e destruindo a reforma que ela tinha feito com o pouco dinheiro que recebia – um salário mínimo de auxílio-doença. Dali para frente, os tumores pioraram. Em abril de 2016, ela perdeu a memória e recebeu diagnóstico de morte iminente, pois o câncer teria atingido a cabeça. Toda a família foi despedir-se no hospital. Mas foi “alarme falso”, tinha tido só um estresse. “A gente sofreu à toa”, falou a filha Ludmila Batista.

Perdas

Desde que fomos apresentadas, o semblante de Ângela guardava o remorso por ter adoecido, ao passo que agradecia a Deus pelo restinho de vida que lhe dera. Ela sentia muita dor no peito. Os nódulos do pescoço cresciam quando ficava nervosa. “Tem dia que me sinto bem, mas tem dia que estou bastante debilitada”, oscilava. De frente para o espelho, ela não enxergava-se mais. Desanimava por não poder ir ver um supermercado que inaugurara perto de casa. “Tem vez que quero ir lá fora olhar minhas plantas, mas me dá aquele cansaço”. Quando a cadela Shakira, companheira de 11 anos, morreu, ela chorou muito, não sustentava perder mais.

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A reportagem
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O câncer

UMA LUTA  de 13 anos contra o câncer

Ângela fez duas cirurgias e passou por cinco tipos de quimioterapia, que lhe fraquejaram o coração

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Ângela
Oxigênio.No sofá, couberam ela, três das quatro filhas, os quatro netos (um bebê no colo) e o aparelho presente no último ano de Ângela, como um membro da família, que não lhe deixava faltar o ar
PUBLICADO EM 28/07/16 - 03h00

Ângela só ia ao médico para “ganhar menino”, nas palavras dela. Nunca adoecia. Quando o caroço do tamanho de um feijão, mas visível, surgiu na mama esquerda, ela pensou que fosse um machucado passageiro e ficou quase um ano com ele crescendo. “Naquela época (em 2004), eu tinha pouca informação, não pensava que uma doença dessa ia aparecer em mim, não era como agora, que tem um tanto de gente com essa doença” – ela não gostava de falar a palavra ‘câncer’. “Se arrependimento matasse, quase 14 anos atrás, comigo não tinha acontecido isso, eu tinha muita saúde”, ressentia-se.

No ano de 2004, eram 15.866 pessoas em tratamento de câncer, em Minas Gerais. Em 2015, passou a ser mais do que o dobro: 36.576, de acordo com a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG). Quando os médicos falaram com Ângela que seu caroço era um tumor maligno, foi um baque, lembrou ela, que nesse dia voltou para casa chorando sozinha: “Minhas meninas eram pequenas, seria difícil aceitar. Achei que já fosse morrer e estou aqui até hoje”; ela se foi justamente seis meses depois de nos ter dito isso. Sobreviveu 13 anos, entre recaídas e recuperação. “No começo, achei que fosse melhorar”, disse. Mas o câncer alastrou da mama para osso, pescoço e pulmão.

Procedimentos

Ângela fez cirurgias para retirar o seio esquerdo e os nódulos do pescoço, passou por cinco tipos de quimioterapias, sendo que umas duravam quatro horas, outras duas horas, 40 minutos, 20 minutos. Ficava quase um ano em tratamento, o cabelo caía, depois parava, os fios começavam a crescer um pouquinho, e já era hora de voltar para a hospital e começar tudo de novo.

Desse jeito, aos trancos, criou quatro filhas – a mais velha tinha 12 anos quando a mãe descobriu o primeiro tumor, e a mais nova, 5. O neto Thiago Henrique, 8, a quem ela criou como filho, não conheceu a avó sadia. Enquanto pôde, Ângela segurou as rédeas da casa – guardava o dinheiro do sustento da família no lenço da cabeça. Só se deixou cair de cama, sem ter condições de comer ou ir ao banheiro sozinha, na sua última semana de vida. “Muita gente nem sabia que eu estava doente”, orgulhava-se do período em que estava mais ativa e não usava a mangueira de oxigênio para respirar.

Não gostava de faltar a nenhuma consulta. “Já vi sete morrerem (com câncer), a vizinha morreu porque não quis se tratar. Quem cuida da gente é só a gente; se não fizer isso, não tem cura”, afirmou na primeira vez em que a visitamos, quando ela tinha começado com os cuidados paliativos e já não tinha mais chance de ser curada. Naquele momento, Ângela deixou claro que não desistiria fácil, independentemente do prognóstico, pois o que mais aprendeu na vida foi a lutar.

Com o passar do tempo, que avançava contra ela, começou a tomar consciência da situação e a encarar com dignidade. “Eu acho que, no fundo, o câncer não cura, prolonga a vida da gente, deixa a gente ficar bem um tempo. Tem vez que eu penso em desistir, mas Deus me deu essa oportunidade, então tenho que continuar lutando. Todos os dias eu agradeço por ter tido fortaleza para criar meus filhos”, incluindo Tiago e os sobrinhos criados por ela.

“Inimigo”

Ângela precisava agarrar-se a qualquer esperança, como a de deixar de usar o oxigênio, mesmo sabendo que sem ele não continuaria viva. “Eu fico o dia inteiro sem, pensando que consigo me libertar, mas não”, reconheceu. No último ano de vida, aquele tubo enfiado no nariz e o barulho da máquina 24 horas incomodavam, às vezes mais do que a úlcera do câncer que tomou toda a mama direita.

Entre usar o aparelho e nada – ou ficar internada, ou sentir falta de ar –, ela o aceitava a contragosto. “Infelizmente, a gente se acostuma com tudo que é ruim. Ele fortalece meu coração, que só fica fraquinho, não sei por que isso”, disse. Na verdade, ela desenvolveu alterações cardíacas por predisposição e por ter sido exposta aos medicamentos (quimioterapia) mais ativos, com mais chances de combater a doença, explicou a oncologista Vanessa Almeida. “Dona Ângela é uma guerreira”, comentou.

Ângela via o oxigênio como um inimigo porque iniciou o uso dele quando o câncer avançava nos pulmões. Preferia pôr a culpa no aparelho, que a fazia sentir-se estranha na rua aos olhos dos outros e limitava suas saídas de casa, a não ser que carregasse o cilindro móvel apelidado de “cachorrinho”, que lhe dava uma hora de ar. “Depois do oxigênio, não melhorei nada, só fico com mais cansaço. Nunca me entreguei, mas essa é a fase que eu estou mais fraca, desde quando descobri essa ‘bendita’ dessa minha doença, que eu falo que é minha, mas não é”, queixou-se.

Sem um seio
 
O câncer não agredia Ângela apenas fisicamente. A ferida na mama direita ardia e coçava, não tinha outro jeito a não ser passar cremes. Estava tomada de nódulos, mas ainda representava um seio. O outro lado vazio, no fundo, lhe entristecia. “Sinto vergonha de mim mesma. Quando tomo banho me dá um nervoso esse ‘trem’ liso”. Já tinha passado por muitas cirurgias, dolorosas e longas, de extração dos nódulos que apareciam. Enfrentar uma reconstituição da mama ou retirada do seio esquerdo de nada adiantaria. “Só faltam dois pedacinhos da mama, o resto já tem caroço”. Mas os seios saudáveis ficaram guardados na memória: “Eram grandes, bonitos, eu era gostosa, colocava umas blusinhas com decote; agora tem que tampar tudo. Tem hora que dá uma saudade”.
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O câncer

UMA LUTA  de 13 anos contra o câncer
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"Eu aconselho as minhas meninas: se aparecer uma verruga, uma pinta, corre para o médico, não deixa o tempo passar, porque vai ser tarde, não tem como voltar atrás. Essa doença (câncer) chega e acaba com tudo, é tristeza em cima de tristeza"
Ângela Batista
paciente

Os números da doença

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Cuidados
PUBLICADO EM 26/07/16 - 19h28

Realidade

Embora quase todas as pessoas queiram uma vida longa e uma morte ligeira e sem dor, o fim raramente é assim. Estamos vivendo mais tempo e com mais doenças. Pesquisas indicam que mais da metade das mortes ocorre após anos de recuperação e recaída, e só um quinto delas é repentina, como em acidentes de carro. Em Minas Gerais, o câncer matou, em média, 2,5 pessoas por hora, em 2016. E os números aumentam a cada ano. Na última década, houve um crescimento de 45%. No entanto, nos países ocidentais, a partir do século XX, a morte ficou escondida no cenário hospitalar, onde muitos partem solitários, entubados, num leito frio com tetos e luzes brancas. Distante e pouco familiar, ficou mais difícil falar sobre a finitude. 

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Os números da doença
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A família

QUATRO FILHAS  jovens que velaram a mãe em vida

Ângela despediu-se de cada uma, e o que mais queria era ver a união delas

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Fernanda Carvalho
Natal. Boa parte da família reuniu-se na casa dela em dois dias de festa: “faltou gente, mas foi do jeito que eu queria”
PUBLICADO EM 28/07/16 - 03h00

“Se não fosse pelos meus filhos, eu não estaria mais aqui. Eles precisam muito de mim ainda”, acreditava Ângela Batista. Nos cinco meses seguintes que antecederam sua partida, ela foi convencendo-se de que a família teria que continuar sem ela. Organizou tudo que podia, falou de suas vontades e de como queria que fosse depois que ela fosse embora. “Eu falo para elas se prepararem, posso não estar aqui amanhã, mas elas não querem me ouvir, parece que não vão aceitar nunca”, dizia Ângela, já imaginando como seria o instante em que ela “fecharia o olho para sempre”: “As meninas vão sair gritando, vai ser um desespero”. Foi assim.

Com uma família de oito irmãos e muitos agregados, Ângela teve um velório cheio, assim como era a casa dela sempre. Todos choraram muito, e quem não a conhecia poderia pensar que foi uma morte repentina. Cada um ali teve a oportunidade de se despedir dela em vida mais de uma vez, mas viram ela voltar das fases mais penosas da doença.

Entre as quatro filhas havia um pacto de silêncio. Era como se falar sobre a morte da mãe fizesse isso acontecer mais rápido. Cada uma continuou levando a vida tentando ignorar aquela angústia no peito. Todas choravam escondidas, inclusive a mãe. “Nunca choro perto delas, coloco na minha cabeça que não posso deixar elas doentes porque eu estou doente. Aí choro de noite, dentro do banheiro”, revelou Ângela.

Ludmila Stefane Batista Amaral fez 18 anos um mês antes de a mãe morrer. Era a que morava com Ângela, dormia com ela, fazia tudo pela mãe. Era a enfermeira, a agenda, a cuidadora, a companheira. “Ela é meu xodó, tudo que eu tenho devo a essa menina, que pegou a fase mais pesada. Ela vai atrás de tudo, tem os telefones das médicas, mudou a escola para noite para me ajudar. O negócio dela é só cuidar de mim, não namora, não vai a lugar nenhum”, admitia Ângela sobre o espaço que ocupava na vida da mais nova. “Falei com a Queque (outra filha) para ela vir aqui para casa, ficar com a Lulu”, preocupava-se, antes de morrer.

Queture Natália Batista (Queque), 22, alugou um apartamento dois andares acima da mãe para ficar sempre por perto, mas fazia tempo que Ângela não conseguia subir até lá. Rayane Priscila Batista, 24, tinha a casa dela no bloco ao lado, mas ficou morando com a mãe quase um ano e levou junto a filha Jamily Victoria, 5. Somente no último mês de Ângela, Rayane voltou para sua casa. Aos 16 anos, ela engravidou de Tiago Henrique, 8, cujo pai foi assassinado por causa de drogas. O menino foi, então, criado pela avó. Era Ângela quem sempre ia às reuniões da escola, e não ter conseguido ir neste ano lhe entristecia. “Minha preocupação maior é ele, tenho medo de a Rayane, ‘descabeçada’, não cuidar dele direito, falo para Leidiane (a mais velha) que quero que ela termine de criar ele para mim”, pedia a mãe-avó.

Leidiane Batista, 26, teve seu primeiro filho há um ano. Era a que morava mais longe, no bairro vizinho, mas demonstrava maior proximidade em forma de carinho. “A Leidiane vai sofrer muito, tadinha. O Riquelme foi uma bênção para ajudá-la, essa maravilha de menino”, comentava Ângela. O netinho mais novo foi o que ela menos ajudou a cuidar, e é o que guarda mais semelhanças com ela.

Pouco mais de um mês antes da morte de Ângela, o marido Valdivino Amaral voltou a dormir com a mulher. Parou de beber, por ter tomado consciência da gravidade da situação, e isso fez com que ela partisse mais tranquila. “Divino tem que ficar forte para comandar a casa, mas tenho impressão de que ele não vai aguentar ficar sem mim”. Valdivino sofreu um AVC menos de um mês depois da morte da mulher e recupera-se das sequelas em casa.

Ângela nunca reclamava de dor, não queria ser um peso, acostumada sempre a tornar a vida de todos mais leve. Nos recados, nos ensinamentos e nos hábitos, Ângela tornou-se eterna para os seus.

Último Natal

A maior ansiedade de Ângela era conseguir passar o Natal de 2016 em família, tinha a certeza de que seria o último. “Não quero estragar o Natal das meninas, passar deitada na cama”, dizia. As filhas programaram amigo-oculto, e fizeram Ângela montar a árvore de Natal. É comum o paciente morrer depois de uma data que está aguardando muito, dizem os paliativistas. Passado o Natal, ela cochichou: “Agora posso morrer feliz, foi uma despedida, as meninas que não me escutem”. Mas Ângela ainda realizaria outros sonhos. Um deles era reencontrar um irmão, sumido e afastado da família há mais de três anos. O outro, conhecer o cantor Eduardo Costa. Para ver o artista sertanejo por cinco minutos, ela enfrentou três horas de espera na ambulância da casa de show onde ele tocaria. Mas saiu emocionada.

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A família

QUATRO FILHAS  jovens que velaram a mãe em vida
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As filhas de Ângela

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PUBLICADO EM 26/07/16 - 19h50

Leidiane Batista, 26

Leidiane Batista

“Da primeira vez que ela adoeceu, recuperou-se rápido, mas depois de cinco anos (o tumor) voltou. Um amigo dela ajudou muito, lavava as roupas para ela porque a gente era pequena e meu pai trabalhava. Ela sempre batalhou para cuidar da gente, ensinou coisas boas. Queria ter curtido mais minha mãe, eu namorava e não ia para as festas com ela. Agora venho sempre aqui. Ela foi a minha casa poucas vezes. Quem está me dando forças hoje é o Riquelme (filho) porque eu sei que estou perdendo minha mãe, ela está fraca, precisa descansar. Eu só não imagino minha vida sem ela. Fiquei morrendo de medo de ela não conseguir ver o Riquelme nascer. Ela não conseguiu assistir ao meu parto nem cuidar muito do Riquelme. Todo mundo fala que ele é a cara dela, tem o nariz dela”. (7/12/2016)

Rayane Batista, 24

Rayane Batista

“Cresci com a doença dela, foi muito triste ver ela assim. Às vezes ela melhorava, às vezes piorava. É uma guerreira. Ela criou o meu filho (Tiago) desde que ele nasceu e me ajudou com Jamily, agradeço muito. O que eu puder fazer para realizar os desejos dela eu faço. Ela tem medo de morrer por causa do Tiago, que dorme junto com ela. Quando ela perdeu a memória (em abril de 2016), eles acharam que o tumor estava no cérebro, perguntaram se a gente autorizava não entubá-la, no CTI, e a gente quis que ela ficasse no quarto para se despedir. Eu peço a Deus que não deixe ela sofrer. Eu sei que sou a que dá mais trabalho, mas não aguento imaginar perder minha mãe. O câncer está avançado, os médicos já desenganaram, mas eu creio que ela vai se curar ainda”. (17/11/2016)

Queture Batista, 22

Queture Batista

“Minha mãe não era assim, era alegre. De uns três anos para cá, você olha para ela e ela está com cara de dor. Se a gente sente uma dor de cabeça e fica nervosa, imagina ela. Ela é exemplo de vida para todo mundo. Eu sou a mais forte, meio ignorante, mas sozinha eu não me seguro tanto. Quando a casa pegou fogo (em setembro de 2016), foi uma barra, ela tinha lutado para arrumar esse apartamento, e foi na mesma época em que ela colocou o cateter. O médico falou comigo que ela não tinha muito tempo, que era para ficar mais perto dela, não deixar ela no hospital, para eu conversar com minhas irmãs e a gente ficar unida. Parei de pedir a Deus para ter ela comigo, comecei a pedir para dar paz a ela. Minha preocupação é o Tiago, ele diz que, se a avó morrer, ele se mata”. (14/12/2016)

Ludmila Batista, 18

Ludmila Batista

“Quando eu tinha 16 anos, o câncer dela atingiu o pulmão, aí eu tive que cuidar dela como se eu fosse a mãe. Deixei de viver minha vida para fazer tudo por ela, não me arrependo, aprendi que ‘desistir, jamais’. A gente via ela sentindo dor, emagrecendo e não podia fazer nada. O serviço paliativo foi a melhor coisa que recebemos porque seria ruim ela ir para o hospital toda hora, ia ficar sem ver os netos. Nas últimas horas dela no hospital, ela sofreu muito, nunca quis colocar uma fralda e usou lá, tentava falar, mas não conseguia. Ela tinha uma força estranha. Fico feliz de ela ter visto eu fazer 18 anos, mas vai ser difícil quando a gente ver que ela não estará mais aqui nas datas comemorativas. A impressão que eu tenho é que ela está na casa de alguma tia minha e que vai voltar”. (19/5/2017)

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As filhas de Ângela
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“Não entendo por que fui ter essa doença agora, tem tanta coisa que eu queria fazer ainda, mas consegui aproveitar a vida muito bem, curti muito meus filhos, meus netos..."
Ângela Batista
paciente

A morte

A MORTE DIGNA, já que até o fim é vida

Durante nove meses, equipe paliativista lutou para aliviar o sofrimento de Ângela

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PUBLICADO EM 28/07/16 - 03h00

Foram nove meses de cuidados profundos para a finitude, tal qual uma gestação. Em 27 de abril de 2017, Ângela Batista renasceu para a “vida eterna”, como era sua crença. Quando a conhecemos, em outubro de 2016, já fazia dois meses que ela estava sendo atendida pela equipe de Cuidados Paliativos. A nossa esperança de fazer uma reportagem sobre a cura se esvaziava a cada ida à casa de Ângela. Víamos que ela estava sempre um pouco pior, como uma flor que ia murchando. E ela adorava as plantas; certa vez viu que as suas já estavam sem vida e disse: “Gostava de vê-las desabrochar, vou ressuscitá-las”.

Ângela acordava todos os dias com essa mesma confiança de que sempre havia algo a ser feito, ainda nesta vida, que ela poderia resistir mais um bocado. Mas foi perdendo as funções do organismo, passando a funcionar com o que tinha – parecia arrastar uma bicicleta que estava um dia sem pneus, na outra semana sem rodas, até ter simplesmente o guidom, tentando permanecer firme.

“Eu só tenho 55 anos, queria viver muito ainda, mas a vida que estou tendo hoje é com muito sofrimento”, lastimava em segredo para mim. Para a família, queria aparentar alegria e esperança, escondia a dor física e emocional. Não gostava de ver ninguém com pena. “Eu não estou morrendo”, dizia, enquanto morria um pouco por dia. Já não tinha mais apetite. Quando dava conta de fazer uma comida, era só para se sentir útil, nem provava. Seu peso caiu de 42 kg para 28 kg em um ano. “Eu não era gorda, mas eu tinha carne. Olha meu bracinho agora”, mostrava. A equipe paliativista explicou que na fase de metástase (em que o câncer se espalha), comer muito pode alimentar os tumores.

Ela também já não tinha sono, começou a sentir medo de morrer sozinha, dormindo – ao mesmo tempo, tinha receio de morrer na frente das filhas. “Para Deus nada é impossível, mas curar, não vou mais”, admitia para si, farta das recaídas dos últimos 13 anos. A frustração da equipe paliativista não é a inexistência da cura, é a ausência de alívio. Atentam-se principalmente ao controle de dor, pois julgam que não há qualidade de vida e morte digna com dor. A quantidade de morfina – um dos analgésicos mais fortes – que Ângela tomava aumentou com o tempo, chegou a três comprimidos de quatro em quatro horas, com dipirona no intervalo. Fez subdoses de quimioterapia na tentativa de reduzir os sintomas, sem muito efeito. “A dor é tão forte, será que, se eu morrer, a dor acaba?”, perguntava, sentindo fincadas na cabeça, no peito e nos braços, fraquezas que lhe arrancavam a graça de viver.

À medida que seu corpo definhava, Ângela deprimia-se, desleixava-se no tratamento, e as perguntas sobre a morte multiplicavam-se. “Eu aceito, mas tenho medo, não sei como vou morrer, queria que fosse rápido; será que vou para onde? Ninguém sabe direito”. E imaginava: “Queria abraçar meus pais, mas eles falam que a gente não vai se reconhecer”.

Nos momentos em que a dor era insuportável, o jeito era ir para o hospital a fim de receber medicação venosa e se hidratar. Ia chorando, com pavor de não voltar, despedia-se. Contudo, quando as dores adormeciam, Ângela colocava a morte no canto e agarrava-se ao que acreditava ser “mais uma chance de Deus” para realizar seus últimos feitos. “Consegui lavar duas bacias de pratos”, comemorava.

Pegar ônibus, votar nas eleições de 2016, sem nem ter um candidato: fazia com gosto de primeira vez tudo que era a última. Desde que a doença começou a dar sinais de que não sararia, Ângela passou a estabelecer metas: “A Queque ficou grávida, eu pensei: será que vou ver o Kauan nascer? E ele hoje já está desse tamanho (3 anos)”. Depois foi com o Riquelme (neto de 1 ano). “Eu nunca sei se vou ter mais uma semana”. Receber as visitas da reportagem e dos paliativistas tornou-se uma meta semanal para ela, que só saía do quarto para isso.

FIM

Quando chegou a semana final, no dia 24 de abril, o enfermeiro paliativista pediu que todos ficassem com ela. Ângela não conseguia respirar direito nem com o oxigênio. Sentia dormência, ficou com o olhar vago, sonolenta, perdida nos pensamentos. Manifestou o desejo de morrer em casa, reuniu as filhas, pediu desculpas pelo trabalho que deu. Falou que não as estava abandonando, mas que precisava descansar e quis que rezassem por ela.

Na madrugada de 26 de abril, com muita falta de ar, Ângela decidiu ir para o hospital, precisava morrer lutando. Ficou 26 horas num leito de terapia intensiva, puxando fundo cada respiração, para receber, de novo, os familiares.

Fui vê-la. Ângela já não conseguia falar, embora acenasse com o olhar. As suas mãos magrinhas suavam frio, deitei-me no ombro dela, e ela encostou a cabeça na minha. “Vai em paz, Ângela”.

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A morte

A MORTE DIGNA, já que até o fim é vida
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Hora da partida

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PUBLICADO EM 26/07/16 - 20h58

Morrer em casa. Se pudéssemos escolher, a maioria de nós gostaria que fosse assim, mas poucos creem que será, muito menos conhecem quem teve tal sorte. Essa é uma constatação da pesquisa da revista britânica “The Economist” em quatro países, incluindo o Brasil.

A cultura ocidental de evitar a morte, muitas vezes, faz com que a partida não seja um momento tranquilo, principalmente se há crianças na casa ou se o doente tem sintomas como falta de ar e hemorragia.

Mas a despedida digna pode ocorrer também no hospital, onde equipes paliativistas utilizam recursos para acalmar o paciente, tudo com o consentimento da família. “Em situações extremas, em que a pessoa já iria morrer, a gente seda ela para que isso aconteça de um jeito mais confortável para todo mundo que está ali”, explica a geriatra paliativista Camila Alcântara.

A sedação relaxa a musculatura, baixa a frequência respiratória, e o paciente sente um bem-estar, descreve ela. “Se necessário, tiramos a medicação para esperar ele ver um parente que vai chegar de viagem. Podemos controlar isso, usando doses adequadas”. 

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Hora da partida
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Como morremos

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PUBLICADO EM 26/07/16 - 21h01

O que dizem as pesquisas sobre o assunto pelo mundo

Um estudo norte-americano descobriu que há conflitos entre a família e os médicos em cerca de metade dos casos envolvendo decisões sobre a retirada do tratamento. Um terço dos familiares de pacientes em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) relata sintomas de transtorno de estresse pós-traumático

A maioria dos oncologistas que assistem vários pacientes morrendo diz que nunca foi ensinado a falar com eles

Os médicos muitas vezes negligenciam cuidados paliativos, que envolvem dar opiáceos para a dor, tratar a falta de ar, assim como o aconselhamento de pacientes. Muitas vezes isso “é visto como o que você faz quando você desiste de um paciente”

Um relatório publicado em 2015 pela Economist Intelligence Unit avaliou a “qualidade da morte” em 80 países. Apenas a Áustria e os Estados Unidos tinham a capacidade de garantir que pelo menos metade de seus pacientes recebesse cuidados paliativo.

Frases

“A forma como encaramos a morte tem muito a ver com a forma como vivemos, se é superficialmente. É muito difícil encarar de frente, os mais velhos fazem isso melhor”

Francine Portela
Psicóloga oncológica, paliativista

“A morte faz parte do cotidiano, nosso papel é amenizar o sofrimento. Hoje, eu aceito melhor, não é o fim de tudo, você guarda as lembranças, o carinho dado e recebido”

Maria de Fátima Lopes
Técnica de enfermagem, paliativista do HAC

“Morrer de velhice é uma morte rara, singular e extraordinária, muito menos natural do que outras mortes”

Michel de Montaigne
Filósofo francês, que morreu em 1592, aos 59 anos, numa época em que boa parte da população não chegava a completar 40 anos

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Como morremos
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A cura

Com chuva,  Ângela foi 'curada'

Ela derramou sobre os seus aquilo que tinha de melhor; agora, olhamos o céu para 'encontrá-la'

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Cemitério
Na hora do enterro, no cemitério da Paz, choveu forte
PUBLICADO EM 28/07/16 - 03h00

As ruas da cidade estavam vazias, silenciosas, quase tudo fechado. Era dia de paralisação nacional contra as reformas do governo federal. Chovia fraquinho. Ludmila, a filha mais nova, olhava o relógio. Era hora de se despedir e fechar o caixão. Ângela era velada, no Barreiro, fazia 19 horas. Umas cem pessoas já tinham passado por lá. Dois ônibus levaram os parentes para o cemitério da Paz, na Pampulha. Pela última vez, as filhas debruçavam-se sobre o corpo da mãe, duas já tinham passado mal, não se seguravam de pé. O choro delas ecoava na sala.

“Mãe, não me deixa”, implorava Lulu. Ainda hoje, três meses depois, pede para ela voltar. Lá fora, o estranho é que a vida também parecia ter parado, mas por conta da greve, depois seguiria seu rumo normal. A partir daquele dia, as meninas de Ângela teriam que aprender a seguir sem aquela que, mesmo doente, nunca deixou de ser o prumo de cada uma. Desde então, elas elaboram a perda, como parte de um processo que já tinha-se iniciado com as sucessivas pioras da mãe, apesar de isso não ser um raciocínio lógico.

Ver o corpo de Ângela deitado no caixão foi doído, chegava ao fim uma reportagem de intensos sete meses. Eu sabia que sua morte era condição para acabar, mas não havia imaginado essa cena, o tanto que ela significaria. Com Ângela, a morte era algo próximo, palpável, todos os dias. A cada mensagem que eu recebia da filha, às vezes de madrugada, pensava que tinha chegado a hora. A expectativa da equipe médica era que ela morreria em dois ou três meses. Com Deus, ela acordou mais que o dobro disso, negociava a cada despertar. A família acostumara-se tanto com a luta de Ângela que ignorava que um dia ela teria fim, como todos nós – só nos resta escolher pelejar, ou não. Quem conheceu sua história de vida e morte tem o dever de ao menos refletir.

As caretas que ela fazia quando adormecia nos últimos dias dava-nos a dimensão de sua dor. A batalha de Ângela foi contra o câncer, os caroços no único peito, a falta de ar, as fraquezas do corpo, a queda dos cabelos, a voz falhada, mas também contra a pobreza, a injustiça, a violência, o machismo, o descaso. Se houve vitória, ela deu-se no caminho. Foi em cada sorriso que surgia em sua feição até quando já não conseguia mais falar. Foi no carinho recebido por todos a quem ela tratava como filhos, inclusive nós, da reportagem. Foi com os paliativistas cuidadosos que a ampararam na reta final. Foi em cada pedido e desejo que ela teve atendidos até completar sua trajetória.

Cura

Na madrugada da morte dela, eu tinha acordado com o barulho da chuva fina, sendo que havia tempos não nublava em Belo Horizonte. Senti que Ângela estava morrendo e lembrei-me de uma lenda sertaneja que ouvi há pouco mais de um ano: “Quando um espírito de luz vai embora, ele não vira estrela, vira chuva para derramar sobre nós aquilo que ele tem de melhor”. Fiquei na janela, com a mão para fora, sentindo a água de Ângela e tudo que eu tinha vivido com ela em 203 dias. Voltei a dormir e, quando acordei com a ligação de Lulu chorando para me dar a notícia final, estava sonhando com Ângela. No sonho, eu havia ido vê-la no hospital, e ela saía do leito toda de branco, iluminada, não tinha mais a ferida no peito. Eu a abraçava e me ajoelhava no chão, em prantos, de alegria; escreveria sobre o milagre da cura, como desejei desde o princípio.

Mais tarde, na hora real do sepultamento, a chuva engrossou, como se Ângela chorasse por deixar este mundo que ela lutou tanto para ficar, mas lavava as lágrimas daquelas pessoas que se despediam de sua presença física com tanta dor. Naquele instante, dei-me conta de que, finalmente, Ângela estava curada.

Adeus

Na segunda-feira, segui para a casa de Ângela sabendo que já não a encontraria no sofá da sala, sorrindo. Ela estava na cama, fazendo nebulização. Assustou-se quando me viu, pois eu ia às quintas-feiras, e me disse: “Sua reportagem está acabando”. Trocamos agradecimentos, promessas, pedi para ela ser meu anjo e tenho certeza de que ela ajudou-me a escrever este caderno.

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A cura

Com chuva,  Ângela foi 'curada'
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"As meninas (filhas) vão poder ver essa reportagem? Vai ser uma choradeira, né? Espero que tenha alguém para ajudar elas. Vou querer estar lá no cantinho da sala pra ver também. De algum jeito, vou estar"
Ângela Batista
* 17.9.1961 + 27.4.2017

“Qual é a ética médica nestes casos?” 

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PUBLICADO EM 28/07/16 - 03h00

“João* (nome fictício) foi diagnosticado com pseudomixoma, um tipo raro de câncer que afeta a cavidade abdominal, gerando obstruções intestinais, graves e extremamente desconfortáveis. Aos 39 anos, ele estava casado havia apenas três meses e queria muito viver, realizar todos os planos feitos com sua esposa, a vida a dois mal havia começado. Estava disposto a passar por qualquer tratamento, por mais remotos que fossem os resultados, e sua família não pensava diferente. Ele submeteu-se a uma cirurgia no início do tratamento, mas a doença recidivou dois anos depois, e ele precisou ser internado por três vezes no intervalo de um ano e meio – época em que nós o acompanhamos –, e sua qualidade de vida estava deteriorando-se rapidamente.

Sua última internação durou seis meses. No começo desse longo período, por diversas vezes tentei iniciar conversas sobre diretrizes antecipadas de vontade, e ele era irredutível em dizer que desejava até manobras de ressuscitação, se fosse o caso. Nós, da equipe de Cuidados Paliativos, sabíamos que nada poderia conter o avanço da doença ou contribuir para que seu organismo voltasse a funcionar corretamente, e seu dia a dia iria tornar-se cada vez mais sofrido e estressante pelos efeitos da doença. Debatíamos exaustivamente qual o limite da autonomia do paciente diante da adoção de tratamentos fúteis e, muitas vezes, capazes de piorar sua condição, com custos financeiros (para o sistema público), físicos e emocionais (para paciente, familiares e equipe de saúde). Qual é a ética médica nesse caso?

A saída foi continuar apostando em tentativas de conversas e, principalmente, em escutar e acolher as frustrações apontadas por João. Aos poucos, ele foi piorando, até que já não tinha mais independência nem autonomia devido a sua precária condição de saúde. A família foi aceitando sua condição, entendendo que receberia tudo o que realmente precisasse para que seu tempo de vida fosse o melhor possível. Ele declarou, então, que não queria mais submeter-se a meios artificiais para a manutenção da vida. Faleceu aos 42 anos. Sua morte foi suave, tranquila e bem suportada por seus familiares mais próximos.

Para mim, foi um exemplo inequívoco da importância de uma comunicação franca, sem deixar de ser cuidadosa, respeitosa e acolhedora. Dar uma notícia ruim não significa perder o relacionamento com o paciente. Foi comigo, o portador das más notícias, com quem eles mais afeiçoaram-se”.

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“Qual é a ética médica nestes casos?” 
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PUBLICADO EM 27/07/16 - 17h31

Reportagem: Joana Suarez | Fotografias e vídeo: Fernanda Carvalho e Moisés Silva | Edição: Michele Borges da Costa Infografias: Andrea Viana |  Editor Portal O Tempo: Cândido Henrique Silva | Revisão de Texto: Thalita Martins e Luciara Oliveira  Diretor Executivo: Heron Guimarães | Editora Executiva: Lúcia Castro | Secretaria de Redação: Michele Borges da Costa, Murilo Rocha e Renata Nunnes | Data de publicação: 28/7/2017

 

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