Comportamento

Gaslighting: o machismo que violenta a mente feminina 

Insinuações de ‘TPM’ e ‘loucura’ fazem a vítima duvidar da própria lucidez


Publicado em 21 de junho de 2016 | 03:00
 
 
 
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Em meio à forte turbulência política que o país atravessa, outro debate ganhou corpo nos últimos meses. As relações abusivas entraram na pauta e o movimento feminista vem denunciando e identificando comportamentos que acabam minando a autoestima e a confiança das mulheres. Uma dessas práticas é chamada de “gaslighting”, exemplo de abuso psicológico no qual informações são distorcidas e/ou omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade.

De acordo com a psicanalista norte-americana Robin Stern, autora do livro “The Gaslight Effect: How to Spot and Survive the Hidden Manipulation Others Use to Control Your Life” (O Efeito Gaslight: Como Identificar e Sobreviver à Manipulação Oculta que os Outros Usam para Controlar sua Vida, em tradução livre), gaslighting é um desequilíbrio de poder, ainda que sutil, um tipo de jogo em que o mais poderoso tenta definir a realidade do menos potente. Como resultado, a vítima passa a duvidar de si mesma porque permitiu a outra pessoa corroer seu julgamento.

A expressão tem origem na peça “Gas Light” (1938), do dramaturgo inglês Patrick Hamilton (1904-1962), adaptada posteriormente para o cinema – uma delas em 1944, com a atriz Ingrid Bergman (1915-1982) no elenco. Na trama, o marido de uma mulher muito rica bola um plano para roubar sua fortuna, tentando convencê-la e a todos ao seu redor de que está louca.

Gênero. O termo tem sido utilizado pelo movimento feminista para designar um tipo de violência de gênero. Não que seja um problema exclusivo das relações entre homem e mulher, mas ganha contornos específicos graças ao machismo, como explica Júlia Dorigo, professora de psicologia do Centro Universitário Una.

“Tem a ver com descreditar as ideias das mulheres atribuindo descontrole às reações emocionais que não correspondam ao que se espera delas, que são comportamentos de condescendência, gentileza, concordância, apaziguamento. Ou seja, quando temos atitudes de firmeza, assertividade, rigor, somos desconstruídas por afirmações como ‘deve estar na TPM’ ou ‘está louca’. A questão de gênero está na forma como a violência se configura”, diz.

O gaslighting opera no reforço de uma sociedade machista, ressalta a pesquisadora do departamento de comunicação social da UFMG, que estuda as relações entre a comunicação e a violência contra a mulher, Bárbara Caldeira. “Isso se dá na medida em que desqualifica mulheres ao construir a imagem de ‘loucas’, ‘fora de controle’, ‘histéricas’ e, portanto, incapazes de tomar decisões importantes ou de ter opiniões respeitadas por conta de uma suposta fragilidade emocional”, afirma. “Acontece o tempo todo em todos os tipos de relacionamentos, sejam afetivos ou profissionais”, diz.

De acordo com a pesquisadora, frequentemente a presidente afastada Dilma Rousseff teve exarcebados seus supostos comportamentos baseados em emoção descontrolada e na sua hipotética incapacidade racional: “É levar a crer que uma mulher enlouqueceu, ‘perdeu a razão’. Quando não é a sua capacidade administrativa de Dilma que é questionada, mas sua sanidade, esse é o princípio do gaslighting”.

Dois pesos. Os mesmos traços de comportamento, quando apresentados por homens, são percebidos como demonstrações de poder, confiança e autoridade, observa o coletivo de mulheres Think Olga, em um post no Facebook: “O ex-técnico da seleção brasileira Dunga é conhecido por seu comportamento explosivo, mas quando o assunto foi capa da revista ‘Época’, a abordagem foi bem mais positiva: ‘O Dom da Fúria. O que nos faz perder o controle. E como usar a raiva a nosso favor’”. “Essa é a sutileza do machismo, que está presente de tal forma que a gente reproduz sem perceber”, argumenta Júlia Dorigo.

Cultura pop retrata a situação

Humor. O grupo Porta dos Fundos, famoso por seus vídeos no YouTube, ilustrou claramente como funciona o gaslighting no esquete “Flagra”, de 2014. Uma mulher surpreende o marido com a amante na cama. Para se safar, ele acusa a mulher de louca e arma uma situação para fazê-la acreditar que foi ela quem o traiu.

Celebridade. A cantora Rihanna escreveu em seu perfil no Twitter: “Nunca subestime a habilidade de um homem de te fazer sentir culpada por um erro dele”. Em 2009, Rihanna foi agredida pelo ex-namorado, o cantor Chris Brown. Ele foi condenado a cinco anos em liberdade condicional e 180 horas de serviços comunitários.

TV. Jessica Jones, heroína dos quadrinhos que ganhou uma série, vive uma relação abusiva com o vilão Kilgrave. Ele a manipula para questionar suas próprias certezas.

Problema pode levar ao desenvolvimento de transtornos

Nos últimos anos de um relacionamento, a publicitária Virgínia Manoel, 23, era frequentemente deixada falando sozinha, ou ouvia coisas como “isso é coisa da sua cabeça”, “você está louca”. Acabou por descobrir que seu parceiro mantinha um relacionamento com outra mulher, e, mesmo assim, ele foi categórico em afirmar que ela estava insana.

“Ele me dizia que não era possível estar em uma relação comigo, já que eu não confiava nele. Eu estava fraca, suava frio. Eu tinha certeza do que estava falando, porém não tinha forças para ir contra. O agressor sabe como controlar a vítima, principalmente em um momento de fraqueza, de vulnerabilidade”, conta.

Dias depois, ao ter uma nova comprovação do caso do então companheiro, Virgínia teve o primeiro surto psicótico, em decorrência de uma depressão.

Casos como o dela demonstram que o gaslighting pode induzir a transtornos mentais, explica a professora de psicologia Júlia Dorigo: “É uma prática assediadora e pode causar uma doença. A exposição a repetidos questionamentos, uma forma de violência infligida repetidas vezes, de diversas maneiras, faz adoecer porque vai restringindo a capacidade do indivíduo de agir”. (JA)

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