Crisp

Arquivamento cresceu 700%

Levantamento mostra que engavetamento de inquéritos passou de 124, em 2003, para 988, em 2013

Seg, 29/05/17 - 03h00
Provas. Polícia não consegue identificar autoria dos assassinatos em 87% dos casos, de acordo com Crisp | Foto: ALEXANDRE GUZANSHE – 6.8.2009

Um servente de pedreiro de 21 anos foi assassinado em uma madrugada fria de junho de 2011. Passados três dias, seu corpo foi encontrado no bairro Bonsucesso, na região do Barreiro, em Belo Horizonte, jogado na rua. Quase seis anos depois, em fevereiro passado, a polícia sugeriu o arquivamento da investigação. A mãe, uma catadora de latinhas de 51 anos, não quer saber de Justiça e fica alterada quando lembra do dia em que viu o corpo do filho no necrotério. “Pelo menos pude fazer um velório para ele. Mas o arquivo do meu filho está morto”, disse ela, sem nem ter sido comunicada de que o caso havia sido arquivado.

A reação dessa mãe é o lado humano resultante de uma estatística: em uma década, os arquivamentos de inquéritos aumentaram 700%, passando de 124, em 2003, para 988, em 2013, conforme pesquisa do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), da UFMG. Ao todo, nesse período, 5.112 investigações foram arquivadas em Belo Horizonte com autorização da Justiça. O motivo: falta de um suspeito – sem saber quem é o autor, a investigação não avança.

A análise do Crisp estima ainda que a polícia só consegue investigar 13% dos homicídios. “Os investigadores afirmaram que é dada uma prioridade para aqueles crimes ‘mais fáceis’ de investigar, que são os passionais, em que, na maioria das vezes, se conhece o autor ou há flagrante”, diz a pesquisadora Flora Lima. Em crimes relacionados ao tráfico de drogas, continua ela, praticamente não há investigação. “A estrutura da Polícia Civil é vexatória”, conta.

No último dia 15, O TEMPO mostrou o problema da investigação de homicídios em Belo Horizonte em reportagem especial. O número de casos represados – sem solução – cresceu 48%, entre 2012 e 2016, e os inquéritos concluídos caíram 67%. A Polícia Civil justifica que a maioria das mortes está atrelada ao tráfico e que, nesses casos, é mais difícil encontrar testemunhas e chegar ao autor do crime.

Trâmite. Quem oficialmente pode pedir o arquivamento do inquérito é o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), que faz isso baseado no que foi apurado e sugerido pela Polícia Civil.

“Temos uma taxa baixíssima, similar a de outros Estados, de apuração de autoria, pela ineficiência dos órgãos estatais incumbidos da investigação, por falta de estrutura, pelo aumento significativo de homicídios ocorridos entre facções criminosas em disputa pelo tráfico de drogas, entre outros”, argumenta o promotor Henrique Nogueira Macedo. O juiz Thiago Cabral, por sua vez, pondera que “é muito comum a impossibilidade de se identificar autores de homicídios, mas o Judiciário só julga quem é processado e acusado”.

Se para polícia e Justiça a autoria do assassinato do servente de pedreiro não foi esclarecida, na comunidade onde ele morava, no Barreiro, muitos sabem como e por que o jovem foi morto. “Vários usuários de droga como ele morrem, ninguém investiga mesmo não. Só se a família ficar de cima, mas quem é doido de falar alguma coisa?”, questiona a tia do rapaz. A mãe acredita que quem matou seu filho já pagou com a vida. “Deixa os mortos descansarem em paz. Oro para os que estão vivos”, desabafa a catadora.

Crescimento. O estudo do Crisp também mostra que, a partir do lançamento da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp), em fevereiro de 2010, o número de inquéritos arquivados começa a crescer. Uma das metas da Enasp era analisar todas as investigações antigas, seja para arquivamento ou ajuizamento de denúncia.

Com a concentração de esforços para apreciar mais inquéritos, verificou-se, segundo o juiz Cabral, que muitos estavam sem identificação de autoria e, por isso, eles foram arquivados. “Isso é triste e grave”, admite. O arquivamento, porém, é sujeito a reabertura, caso as autoridades obtenham novas provas.


Saiba mais

Prisões. Atualmente, em MG, há 47,8 mil mandados de prisão pendentes na Justiça. Muitos são de réus não localizados, segundo o juiz Thiago Cabral. Do outro lado, o promotor Henrique Macedo acredita que é essencial “a melhor estruturação dos órgãos de investigação para possibilitar uma ação efetiva, técnica e qualificada”.

Resposta. A Polícia Civil alega que a maior parte das investigações de homicídios apresenta complexidade em função do local e da maneira como são praticados, dificultando a investigação e o depoimento de testemunhas, que se sentem inseguras.

Meta. A Enasp foi criada pelo Ministério da Justiça para “promover a articulação dos órgãos, coordenar ações de combate à violência e traçar políticas nacionais”.


Processos

BH é a mais lenta entre cinco capitais

Antes da pesquisa sobre os processos prescritos e inquéritos arquivados, o Crisp realizou um levantamento, referente ao ano de 2014, em cinco capitais brasileiras, entre elas Belo Horizonte. O que se constatou foi que BH era a cidade onde os processos de homicídio mais demoravam para serem julgados, com uma média de 9,3 anos – um ano a mais que Goiânia (GO). Recife (PE), Belém (PA) e Porto Alegre (RS) também gastavam menos tempo, ou porque tinham mais Tribunais do Júri, ou porque registravam menos homicídios.

A partir disso, o Crisp resolveu verificar se a demora processual na capital mineira era algo pontual e concluiu que, na década anterior a 2014, a demora prevalecia. “Os processos de homicídio são mais demorados porque (no júri) a presença física de um grande número de autoridades é fundamental”, avalia o juiz Thiago Cabral.

Na melhor das hipóteses, um júri dura cerca de dez horas para acontecer. A reportagem assistiu a parte de dois julgamentos que ocorreram no último dia 11 no Fórum Lafayette, em BH. Em um deles, na plateia estavam as famílias do réu e da vítima. No outro, apenas os familiares do réu assistiam ao promotor falar para os jurados que muitas testemunhas têm medo de depor. “Já vi caso do réu saber na cadeia o teor do depoimento dado no júri”, conta. (JS)

Origem

Júri. “Quem nunca, por violenta paixão ou emoção, teve vontade de matar outra pessoa?”. Segundo a pesquisadora Ludmila Ribeiro, a frase justifica a existência do Tribunal, já que qualquer um está sujeito a cometer um homicídio e deve ser julgado pela população.

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