Quentinha

Vai comer agora ou quer que embrulhe?

Não é preciso mais dar a desculpa de “levar os ossinhos para o cachorro”: sair do restaurante com uma marmita já é tão normal que até casas chiques oferecem o serviço

PUBLICADO EM 16/06/19 - 03h00

Pode soar estranho para muita gente, mas, acredite: ainda existe quem considere um tabu – ou até mesmo uma deselegância – sair do restaurante com os restos da refeição embrulhados. Alguns se valem de desculpas, como a manjadíssima história de “levar os ossinhos para o cachorro”, mesmo que não tenha canino faminto algum em casa. Outros ainda pedem sacos escuros para ocultar a embalagem. E há quem simplesmente se recuse a pedir ao garçom para reservar o excedente, mesmo que o prato ainda esteja cheio.

Esse não é o caso da jornalista Renata Alves, 38. Apaixonada por longas refeições, ela tem o costume de pedir dois ou três pratos principais com a justificativa de experimentar diversos sabores. “Pra mim, é comum pedir alguns pratos, comer um pouco e já pedir para embrulhar”, conta ela, que nunca recebeu um “não” quando solicitou o embrulho ao garçom.

Renata está certa: levar as sobras não deve ser motivo de vergonha, mesmo em restaurantes sofisticados. Para ela, a atitude é bem confortável. “Deselegante é falar alto no restaurante, deixar o áudio do telefone rolando ou não perguntar o nome do garçom”, argumenta.

Casas mais sofisticadas da capital mineira encaram com normalidade o ato de o cliente sair do estabelecimento com a quentinha debaixo do braço. Aliás, muitos estão bem equipados com embalagens adequadas para viagem, bem como sacolinhas para acomodar a quentinha – caso do restaurante italiano Est! Est!! Est!!!

O chef Simone Biondi estimula seus clientes a levar o embrulho, apesar de não ser um hábito de seu país de origem, a Itália. “Tem gente que leva até a garrafa de vinho que não terminou. Para mim, estão certíssimos”, diz o chef, que oferece, sem custo adicional, a embalagem para viagem. É um direito do cliente levar a comida que ele pagou, ainda mais se tratando dos nossos pratos, que são muito bem-servidos. Prefiro que peçam para embrulhar a ter que jogar fora”, explica ele, referindo-se à legislação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que inibe os restaurantes de repassar a comida que sobra a, por exemplo, a um pedinte – quando esta já ficou exposta, tudo o que não for consumido deve ser descartado. Além disso, a lei 8.137, de 1990, diz que o doador pode ser punido criminalmente caso o alimento repassado cause algum tipo de intoxicação a quem o recebeu. 


Matulas chiques. Especializado em gastronomia baiana, o Alguidares, no Sion, não só estimula a quentinha como ensina ao cliente uma receita do que fazer com as sobras de pratos – sempre fartos ao serem servidos – como a moqueca de peixe camarão, que custa R$ 217 para duas pessoas. “O caldo da moqueca que sobra pode virar um delicioso molho para comer com macarrão. A qualidade da minha comida permanece a mesma depois de ser embalada”, defende Brando Mota. 

No D’Agostim di Paratella, no Santo Agostinho, essa prática também é recorrente. Segundo o chef Matheus Paratella, de 30% a 40% dos frequentadores do restaurante têm o hábito de solicitarem as famosas ‘quentinhas’, seja porque não conseguiram comer tudo, seja porque querem evitar o desperdício.

Outros restaurantes sofisticados que ocupam a capital mineira também dão aval para o embrulho. “Eu acho extremamente justo. O cliente pagou pelo prato, portanto, tem o direito de fazer o que quiser com ele. Quando esse tipo de pedido chega até a mim, eu me sinto lisonjeado”, atesta o premiado chef Ivo Faria, do restaurante Vecchio Sogno.

Dados. Estima-se que, por ano, no Brasil, mais de 26 milhões de toneladas de comida sejam jogadas fora. São números que colocam o país entre os dez que mais desperdiçam comida, de acordo com análise feita pela organização World Resources Institute (WRI), em 2016. Evitar o descarte e solicitar a quentinha pode, inclusive, contribuir para reverter esse quadro. “É muito melhor que a pessoa deguste aquele prato em outro momento, ou que leve para alguém, a simplesmente descartar aquela comida no lixo”, defende o chef do Vecchio Sogno.

Chef do restaurante La Palma, na Pampulha, a filha de Ivo, Naiara Faria concorda com o posicionamento do pai. Em sua cozinha, a marmita é mais um serviço oferecido aos clientes. “É uma pena que ainda haja algumas pessoas que acham que é deselegante. Pelo contrário, é um hábito super responsável”, defende ela.

Mesmo com esses dados que contribuem para que sair com a sacolinha se torne cada vez menos sinônimo de constrangimento, ainda há estabelecimentos que não costumam adotar a prática de embalar os restos dos pratos – caso do Gero, restaurante dentro do Hotel Fasano. Questionado pela reportagem sobre a ausência de oferta de embalagem para as sobras, a casa optou por não justificar o motivo.


O francês Au Bon Vivant também permite que as sobras sejam embrulhadas depois que o prato já está à mesa, mas deixa clara a preocupação com a apresentação dos pedidos, bem como a experiência de se comer no restaurante. Por isso, é raro os frequentadores pedirem para levar as sobras. 

O proprietário Philippe Watel explica que existe um lado estético que se perde ao levar a comida para casa. “Além disso, há pratos e cortes de carnes que não são feitos para serem armazenados para comer depois, caso do entrecôte au poivre vert. Já abrimos algumas exceções e o cliente reclamou da qualidade da comida”, lembra.

A empresária e dona do blog BH Dicas Virgínia Sasdelli admite que não tem esse costume, mas poderia mudar de postura. “Acredito que sair para um restaurante envolve toda uma experiência. Mas pode acontecer de o prato escolhido vir maior do que espera e, aí, levar quentinha para casa é bom demais”, afirma.

Para prolongar a experiência
A designer Luísa Luz, fundadora do Estúdio Veste, cria peças pensando no cotidiano – não por outro motivo, incluiu a marmita em seu rol de produtos. A intenção inicial era incentivar que as pessoas levem a comida caseira – e o afeto que o preparo dela envolve – a outros espaços. Mas nada impede que o movimento seja o contrário. 

“Acharia ótimo se as pessoas tivessem o hábito de levar consigo a marmita de alumínio, assim como o copo reaproveitável: evitaria menos plástico”, salienta ela, que rebate quem acha o ato deselegante. “Andamos quebrando muitos padrões de comportamento; é preciso ter uma naturalidade com isso também”. 

Além do discurso sustentável, tanto ela quanto a jornalista Renata Alves concordam que levar o que sobrou de um jantar também pode ser sinônimo de carinho com o outro. “Na última vez que uma amiga me hospedou em São Paulo, ganhou uma geladeira cheia”, brinca Renata.
Luísa acredita que o ato pode até estender a experiência sensorial que foi vivenciada no restaurante. “Você abre a marmita e pensa: ‘aquele jantar foi incrível, que bom que ainda tenho um pouco dele para lembrar’”, acredita.

Pablo Teixeira, proprietário do Cabernet Butiquim, tem prazer quando o cliente quer levar um pouco do estabelecimento para a casa. “Isso significa que o prato estava bom, gostoso, e que a pessoa quer aproveitar ao máximo”, conclui ele.