Um dos textos mais afiados de Stuart Hall, negro, jamaicano, pensador e teórico gigantesco falecido na última semana, “Que Negro É Esse na Cultura Negra?”, expõe com impressionante precisão os tristes dias que correm. Aspas para o mestre: “Para que não pensem que meu otimismo da vontade agora já superou completamente meu intelecto, deixem-me acrescentar um quarto elemento que comete o atual momento. Se o pós-moderno global representa uma abertura ambígua para a diferença e para as margens e faz com que certo tipo de descentramento da narrativa ocidental se torne provável, ele é acompanhado por uma reação que vem do âmago das políticas culturais: a resistência agressiva à diferença; a tentativa de restaurar o cânone da civilização ocidental; o ataque direto e indireto ao multiculturalismo; o retorno às grandes narrativas da história, da língua e da literatura (os três grandes pilares de sustentação da identidade e da cultura nacionais); a defesa do absolutismo étnico, de um racismo cultural que marcou as eras Thatcher e Reagan; e as novas xenofobias que estão prestes a subjugar a Europa”. Dois dias depois de sua passagem, um episódio confirmou que a mente brilhante de Hall ainda vive e viverá por muito tempo.
Talvez seja a dimensão macro dos estádios de futebol, que deixa tudo o mais muito apequenado – mesmo sendo um estádio lixo como aquele em que Cruzeiro e Real Garcilaso jogaram na semana passada, prova fatal do equivocado glamour (aquele, que adora pontuar que os jogadores se preparam para uma “guerra” ao jogar a Libertadores) que se impõe sobre um torneio que, na verdade, cada vez mais amplifica nossas misérias continentais.
Talvez seja a proporção muito covarde que a imagem na televisão explicita a de um sujeito sendo assistido, sendo julgado, sendo ofendido por milhares de outras pessoas. Um tribunal composto pelo pior material que a espécie humana é capaz de fazer. Em foco, um negro que a cada toque na bola recebia hediondas mímicas de símios (gritos, uivos, socadas no peito) de seres humanos que pareciam pouco ter feito para evoluir de tal estágio inicial.
Talvez foi a defesa natural por alguém ofender sua paixão, jogar lixo no seu quintal e mais especificamente em um sujeito tão admirado por grande parte da torcida (parte da qual me incluo) e até de torcedores rivais – vide as espetaculares manifestações de apoio vindas de todas as cores, depois do ocorrido, que não se furtaram em lamentar a situação ao mesmo tempo em que louvavam a postura e a trajetória do jogador.
Mas, creio que as lágrimas de ódio derramadas na inútil madrugada daquela quinta-feira venham da convicção de que o que Tinga passou foi na verdade a exposição à uma arena pública selvagem, bestial, ignorante, indesculpável. E lupa nenhuma dimensiona o tamanho da estupidez.
Muitas vezes essa arena se chama estádio de futebol. E se chama Facebook, se chama rua. Se chama Peru e se chama Brasil. Estamos todos gravitando frágeis nesta arena, despreparados, desprotegidos. Todos: o simpático Tinga ali foi também a vadia hostilizada nas marchas, os assassinatos de gays na Frei Caneca, os peruanos do Brás, as vítimas de assaltos nos bairros nobres, as vítimas da vida nos bairros pobres.
Estamos sozinhos no meio do campo, na base do “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, torcendo para que o touro seja Ferdinand. Estamos reféns dos comentários das notícias da TV, nos comentários dos sites mais populares, nos vídeos postados, nos likes discutíveis, num anonimato, ao contrário do previsto, cada vez mais que insiste em revelar um monstro hostil e visível. Um outro gigante que, assassinado a cada bala, a cada insulto, a cada sede de vingança (e não por justiça), só faz crescer.
A humanidade está doente. Ela está enfraquecida, imunidade baixa, propícia para vírus oportunistas como estes que, como Hall nos lembra, estão sempre por aí, ocupando as tribunas dessas arenas. A fragilidade ética, moral em que estamos nos equilibrando é exercício para muitos e bons. O problema é que os donos dos circos são daqueles que não servem nem para limpar a merda dos animais enjaulados. Na real, este animais são eles mesmos. Enquanto estes seguirem vestidos com essa fantasia, todo(s) Tinga ainda guardará Stuart Hall.
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