Jobim nadava com força na lagoa Rodrigo de Freitas naquele verão de 1944. Parou um instante, já chegando ao Sacopã, e olhou em volta, imaginando como seria Ipanema dali a 20 anos. A lagoa era clara, cheia de peixes e garças. Ipanema era uma promessa de vida em seu peito molhado.
Leila Diniz estava rindo no bar Jangadeiros, em minha mesa 20 anos depois. Nós éramos jovens, na luz de Ipanema; como Joyce escreveu, estávamos “felizes, moços, perto do selvagem coração da vida”. E eu pensava: “Meu Deus, que alegria! Até quando seremos assim?”
Tínhamos uma espécie de paraíso social ali entre Copa e Leblon. Tom Jobim diria anos depois: “O Brasil será feliz quando tudo for uma grande Ipanema”.
Hoje, estou na rua Visconde de Pirajá com Joana Angélica, espécie de cruz privilegiada da cidade. Vejo o Rio à minha volta. Tudo parece em câmera lenta; na lagoa, percebo que as árvores cresceram. Moro mais em São Paulo e eu não via isso quando morava só aqui. Hoje, vejo a natureza linda e corruptora - “ah... mas é tão lindo...” –, grande álibi para a miséria que ferve nas ruas. A natureza corrompe.
Hoje, nos afligimos com tantos pobres que expõem suas feridas nas esquinas, com tantos vagabundos descendo dos morros.
O que incomoda a população branquinha não é só o assaltante; é o “passeante”. Pardos passeantes de chinelos e calção enchem a Zona Sul. Eles pressentem o medo dos “classe-médias” e desfilam com garbo. O carioca branco se indigna, como se só ele fosse nativo. Vejo que meu mal-estar diante do caos carioca é um mal-estar de classe. Há um horror de classe nos cariocas “brancos”; querem mudar o Rio para ontem, querem que o Rio “volte” a ser algo de “antigamente”. É mentira que tememos apenas a violência. Tememos também a promiscuidade.
O Rio é hoje a saudade de algo que já foi. Ninguém ama o Rio como ele é. Só os miseráveis, que hoje ocupam as praias, amam o Rio – são seus anos dourados.
O Rio atingiu seu ponto de “perfeição” (para os pequenos burgueses) por volta dos anos 50 e 60, quando o acaso deu um tempo na “involução” da cidade e o mito cruzou com o real. A beleza parou um instante entre o erro e a decadência, entre a economia do “milagre” e a tragédia da exclusão das massas, e se equilibrou por alguns anos entre o Posto Nove e a praça General Osório, criando uma ilha utópica da esquerda festiva (eu estava lá) que não contava ainda com a miséria que se reproduzia nos morros.
Hoje, nas ruas de Ipanema, parece que ando num rio do inferno. O ritmo lento dos desocupados se cruza com os olhares trêmulos de madames e aposentados correndo para trás das grades, biquinis em frente a mendigos, população branca temerosa, movendo-se entre a “folga” da “crioulada” e os mendigos que jazem nas portas da igreja, criancinhas brincando na sarjeta, mamadeira e esmolas, caixotes e pernas abertas.
O Rio virou o escândalo dos cariocas. Mas o horror de nada serve; é só angústia vazia. A miséria dos outros tem sido para nós um problema existencial. O “escândalo” parte do equívoco de que eles são um “erro” da natureza. O erro está em nós. Escandalizar-se é se salvar. Mas somos parte do escândalo.
É como se toda essa invasão de pardos (não só na pele – pardos na alma, na vida parda) fosse apenas uma “amolação” na vida “branca”.
No entanto, essa mutação da cidade é definitiva. Voltar a ser o quê? O reduto da Bossa Nova, a ilusão dos filhos da PUC?
Eu vejo as velhas negras de cem anos vendendo arruda na feira, como escravas-de-ganho do século XIX, vejo essa mistura baiano-persa dos camelôs e vejo a malandragem dos feirantes disputando uma risonha luta de classes com madames e velhotes. Vejo isso tudo e entendo que não vai voltar mais nada.
Nunca mais voltará Leila Diniz! Do ponto de vista excludente, de uma administração tradicional, a situação é insolúvel.
O Brasil não virou Ipanema. Ipanema virou o Brasil. Silenciosamente, as 600 favelas que o egoísmo construiu fizeram a revolução parda. A democracia desceu o morro.
Essa revolução silenciosa dos excluídos é um trailer, sim, do Brasil, mas não somente como deflagração de violência.
Uma luta social molenga se instalou no dia a dia, nas esmolas, nos assaltos, nas chacinas, nos ataques do Exército. E não é só a incúria dos governantes ou o egoísmo dos ricos; no fundo, não é culpa de ninguém. Nossa crueldade é a tradição escravista dessa burguesia de ex-negreiros.
O que houve foi uma bolha que cresceu, que estava aí há décadas se formando, uma “bolha antropológica” que provocou uma revolução social suja. Já houve. Ninguém vê isso? É só andar na rua. Um pobre para cada remediado no coração de Ipanema.
E como reformar as mentes de planejadores e urbanistas “clean”? A bolha antropológica não pode ser explodida. Tem de ser obedecida. A bolha sempre esteve ali, desde o tempo das “Memórias do Sargento de Milícias”. Ela sempre esteve aí, só que se arredava nos morros, nas periferias.
Só uma ideologia de reforma que “inclua”, que democratize, pode mudar o Rio. Ficou claro: qualquer ideia de reverter a situação é absurda. A ideologia nostálgica só conduz à ideia de genocídio. Para fazer voltar o chopinho dourado na paz dos sábados, só matando os morros. Há 30 anos, era fácil. Havia dinheiro e menos gente. Até hoje, só houve soluções “brancas” para problemas “pardos”. Agora, só dá para fazer um plano de salvação social para o Rio a partir da aceitação da ideia do “insolúvel”. Os marginalizados têm de ser participantes da reforma.
Não há solução. A partir daí, pode-se começar a pensar. Tudo indica que os novos governantes do Rio já estão pensando assim, como foi a amostra do morro Dona Marta.
É assim que o Brasil terá de ser replanejado: aceitando a senzala, os pretos de ganho, os forros excluídos, os ignorados nos planos de mercado, pois o Rio não vai mudar. Já mudou. Já aconteceu, já está ocupado.
A bruta face da miséria desmoralizou a sentimentalidade branca.
Crônica originalmente publicada no dia 16/06/2009. O colunista está de licença.
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