Sou do tempo em que filho de rico era criança, filho de pobre era “menor”, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) era entendido como uma lei para “o menor”, e não para todas as crianças e adolescentes do país!
E, infelizmente, assim ficou. Tão tacanha visão de mundo é o cenário sobre o qual foi debatida a PEC 171/1993, que reduz a maioridade penal, tendo como pano de fundo o determinismo genético rasteiro, anticientífico e vulgar de que há úteros que carregam “trombadinhas”!
Não fiquei espantada com o publicado pelo jornal inglês “The Guardian” (29.6.2015), que atribuiu ao deputado federal Laerte Bessa (PR-DF), relator da PEC de diminuição da maioridade penal, convicto de que ela é “uma boa lei que acabará com o senso de impunidade em nosso país”, a seguinte declaração: “Um dia, chegaremos a um estágio em que será possível determinar se um bebê, ainda no útero, tem tendências à criminalidade, e, se sim, a mãe não terá permissão para dar à luz”.
No rastro das repercussões negativas, a assessoria do referido parlamentar emitiu uma nota argumentando que a matéria escrita em inglês ganhou interpretações erradas e que “em entrevista ao ‘The Guardian’, o deputado defendeu a redução da maioridade penal para os 16 anos e apenas disse que não via impedimento em reduzi-la futuramente para 14 anos, caso os índices de criminalidade entre menores continuassem altos e estudos apontassem que esse fosse o caminho. Em nenhum momento, Bessa falou em aborto. O deputado, inclusive, já se manifestou diversas vezes em entrevistas contrariamente ao aborto, crime previsto no Código Penal brasileiro”.
Apesar do desmentido, uma declaração eugenista como a citada merece ser esmiuçada, notadamente em seu aspecto de velhacaria desde Francis Galton (1822-1911), que tinha a crença de que os negros eram biologicamente inferiores e burros; e que “os miseráveis deste mundo deveriam ser proibidos de se reproduzir”. Quer dizer, não é de hoje que eugenistas correm em vão atrás de cientificidade para seus desejos inegavelmente racistas! O que só evidencia cada vez mais que a eugenia em si é uma crença de índole bandida do mesmo naipe do darwinismo social e da sociobiologia, pois jamais foi descoberto algo na genética que corrobore tais fés. A eugenia e ideologias similares são racismos em busca de um disfarce de ciência.
O conteúdo anticientífico da declaração merece ser desmascarado, já que está embalado na ignorância do desvio ideológico de que “nada escapa aos genes” – eixo da ideologia do fatalismo genético, que existe unicamente para a espécie e nada mais: ratos geram ratos, cobras geram cobras, gatos geram gatos, porcos geram porcos, e seres humanos geram seres humanos! Ou alguém já viu uma mulher parir um rinoceronte?
A ideia do fatalismo genético sem ser para a espécie e a crença da estabilidade dos genes e dos genomas formam um bloco monolítico jamais respaldado pela genética e é filosoficamente idealista, materialmente insustentável; paulatinamente, está ruindo. Como têm reconhecido inúmeros cientistas, corroborando Mae Wan Ho, “genoma estável é uma abstração”. É norma geral da natureza viva que meio ambiente e genes são visceralmente interdependentes, e é impossível dizer qual é o mais importante.
É uma canseira sem limites ter de enfrentar a ignorância secular de eugenistas, sobretudo quando falam do lugar de autoridade e do poder de legislar sobre suas crenças com o intuito de torná-las leis, na recusa de se render à realidade: somos Homo pela nossa condição biológica e sapiens pelas nossas culturas.
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- Fatima Oliveira
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A abstração do genoma estável e a fé bandida da eugenia
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