Gosto de ouvir testamento de Judas, cultura popular que está acabando. De um lado, há quem considere malhar o Judas uma violência; de outro, era uma cultura forte e presente nos meios populares, em especial nas regiões metropolitanas, onde hoje um número expressivo de pessoas virou evangélico, e as expressões culturais do catolicismo popular vão minguando.
Em janeiro passado não encontrei um reisado para apreciar na ilha de São Luís. Disse-me uma vizinha: “Ah, mulher, acabou tudo isso! O povo virou evangélico. Até bumba meu boi tá no rumo de acabar, por falta de gente pra brincar!”. Pois é, que dirá malhação/queimação de Judas!
É fato que Judas ou se enforcou (Mateus 27:5) ou se jogou de um barranco e se partiu ao meio (Atos 1:18). Escrevi que “malhar ou queimar o Judas no Sábado de Aleluia é, simbolicamente, agir à margem da Justiça oficial, o conhecido ‘fazer justiça com as mãos’: justiçar um traidor sem direito de defesa, motivo pelo qual muita gente é contra a tradição de origem católica e ortodoxa, trazida para a América Latina por espanhóis e portugueses. Justiçamento é uma coisa, e justiça é outra.
“No Brasil, está perdido no tempo o início do costume de julgar, condenar e executar o traidor de Cristo após a leitura do seu testamento, cujo conteúdo satírico é sobre a vida de alguma figura pública real ou salpicado de tiradas humorísticas sobre pessoas de destaque na vida local (bairro ou município), estadual ou nacional. Nada a ver com Judas Iscariotes, aquele que vendeu Cristo por 30 dinheiros.
“A criatividade brasileira transformou a malhação de Judas em uma sátira sobre amigos e vizinhos e/ou sátira política, razão pela qual a ditadura militar de 1964 vigiava as malhações para não permitir que personagens do ou a serviço do regime militar fossem alvo de chacota. Em alguns lugares, era preciso ‘tirar autorização na polícia’ para o evento, só concedida mediante a apresentação do testamento!”
“Não podemos negar a cara política adquirida pela queimação do Judas no Brasil, e omiti-la é esconder uma parte da nossa história... O testamento de Judas é uma peça literária de grande criatividade” (“Como sátira política, a malhação de Judas sobreviverá”?, 10.4.2012).
“Falar mal” da vida dos outros em versos é só pra quem sabe poetizar rimando! E testamento de Judas que se preze é feito em versos: “Para Duda, minha neta/ Que é cheia de mania./ Deixo uma roça completa/ Plantada de melancia” (“Testamento do Judas do Sanharol”, de Mundim do Vale). “Deixo à direita raivosa/ Cujo ‘amor’ é conspirar/ Um pedaço de minha corda/ Para feliz se enforcar” (Do blog “Afinsophia”).
Em Graça Aranha, o homem que quisesse saber se era corno ou se a filha ainda era moça (virgem), tinha de prestar atenção no testamento do Judas da rua do Alto. Muitos casamentos foram desfeitos depois do Sábado de Aleluia. Embora as inconfidências morais aparecessem cifradas, as “candinhas” quebravam a cabeça até decifrá-las. Nas conversas na véspera, Sexta-Feira Santa, a grande pergunta era: quais serão as presepadas do testamento de Judas?
Fazendo Judas, aprendi ou descobri que sabia versejar, lá pelos 8 anos de idade. A meninada “judeira” – porque também era uma brincadeira de criança – pedia ajuda para escrevinhar o testamento do seu Judas. E eu, que tinha o meu Judas, não me fazia de rogada em auxiliar outras crianças donas de Judas. E assim se passou meio século...
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O testamento de Judas é peça literária de grande criatividade
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