Quase toda manhã, fazendo a caminhada com o Bruno – nosso carismático vira-lata –, dou uma passada pela pracinha onde o Zé lava carros. Só o conhecia de vista. Pelos meus registros, a primeira aproximação ocorreu, na verdade, entre o Bruno e o Zé. Como todo cachorro sensível, Bruno capta as energias do eventual transeunte e reage de acordo com essas emanações sutis. Quando o astral é bom, abana o rabo, pula, faz festa, lambendo o novo amigo. Quando é ruim, costuma arrepiar o colarinho e rosnar, desconfiado.
No caso do Zé, foi amor à primeira vista, pronta e efusivamente retribuído. Desde então o Zé faz uma pausa na lavação de carros e diverte-se com as lambidas do Bruno enquanto trocamos meia dúzia de comentários banais sobre a situação do país, o clima ou o último assalto ocorrido no bairro.
Levado por essa estranha mania de tentar limpar o mundo, encontro na pracinha boas chances de fazê-lo. Há sempre garrafas de plástico, copinhos de iogurte, bandejas de isopor vazias e demais porcarias espalhadas pelo gramado, à espera de meu recolhimento e destinação à lixeira da calçada. Discretamente, para não levantar suspeitas da vizinhança quanto à sanidade mental deste cronista, vou fazendo minha parte, ajudando a Superintendência de Limpeza Urbana.
Outro dia, descobri que não sou o único doido varrido do bairro: flagrei o Zé ajuntando copos descartáveis, garrafas de cerveja e pratos de papelão deixados ali – restos de lanches de notívagos levianos. E resmungando, como eu costumo fazer, o Zé jogava tudo na lixeira, irritado. A cena foi fundamental para estreitar nossos laços. Ali estava um aliado precioso de minhas loucuras, não poderia perdê-lo.
– Como tem gente porca no mundo, hein, Zé?
– Demais! O cara não enxerga a lixeira, tá ali na frente!
Desde então, o assunto predominante de nossas breves conversas passou a girar em torno do descaso dos passantes com a praça – e, por extensão, o desleixo com a rua, a cidade, o mundo, enfim. Nesses papos, sempre me vem à cabeça a imagem de um outdoor famoso assinado pela Prefeitura de Nova York. Uma foto mostrava ratazanas fazendo a festa no lixo junto a um meio-fio. E a frase era perfeita: “Se tivéssemos menos porcos nesta cidade, talvez também teríamos menos ratos” – dizia.
Um lavador de carros, no seu ganha-pão humilde e honesto, pode ser um expert em temas ligados à cidadania e ao meio ambiente. Do lixo que sai do interior dos carros até a organização evidente de seu material de trabalho, tudo é tratado com carinho pelo Zé. Seu lava a jato particular segue funcionando, sem interferir na paisagem da praça onde buganvílias, salvas pela altura, exibem sua beleza e resistem à poluição cotidiana metros abaixo.
Hoje, na manhã gelada, o Zé fez algo diferente: puxou até o gramado a velha mangueira de borracha que usa nos carros e estava ali, feliz, aguando a terra castigada por esses extremos do inverno maluco. O cheiro abençoado de mato molhado tomava conta da pracinha quando cheguei.
– Tava precisando mesmo, hein, Zé? – disse, puxando assunto.
– Coisa horrível! Tudo seco! Repara como as plantas agradecem!
Ouvidos atentos, pude escutar gritinhos de alegria das gramíneas, curtindo a chuva improvisada. O Zé fechou a torneira e fez sinal para que eu me aproximasse. Lá fui eu com o Bruno. À meia-voz, confidenciou-me:
– O zelador daquele prédio chique ali – apontou – ficou me censurando. Pra me zoar, perguntou se eu era empregado da prefeitura, aguando a grama.
Tentei enxergar o zelador daquele prédio chique ali, mas o homem já tinha se mandado. Disse ao Zé para não dar bola; ele estava certo, o gramado merecia mesmo uma boa ducha. Em seguida, continuei minha jornada matinal-canina refletindo sobre uma frase que ouvi não sei de quem: “Algumas pessoas são ‘deixa que eu faço’. Outras são ‘isso não é comigo’”.
Coisa boba, um detalhezinho, viram? Mas é a grande diferença desde o tempo das cavernas até os dias de hoje – dias fartos de egoísmo, ironias inúteis, demagogias, discursos acalorados e imundícies nacionais espalhadas pelas ruas.
Uma nação que tolera tanto lixo assim nas ruas não pode reclamar da sujeira escondida sob os tapetes dos gabinetes oficiais. Guardadas as devidas proporções, é tudo a mesma coisa.
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