Não importa se um leitor é voraz ou não, a verdade é que há apenas algumas dezenas de livros que realmente tocam cada pessoa ao longo de sua vida. O restante das leituras, sejam elas muitas ou poucas, vai se mesclando na mente de quem não tem a memória impecável, se transformando numa massa amorfa literária, da qual volta e meia emergem trechos, diálogos e cenários, sempre acompanhados do comentário “não tenho certeza de onde li isso, mas...”.
Entre as obras que marcam o leitor, algumas características parecem ser comuns (se não universais), ajudando os mais distraídos a reconhecê-las. A mais recorrente é quando o livro (como um todo, e não um trecho específico) volta e meia surge na mente do leitor, mesmo se a leitura em si foi feita muitos anos antes. Digamos que a pessoa em questão está dirigindo o carro ao mesmo tempo em que escuta música. Por que motivo a jornada de Musashi (romance de Eiji Yoshikawa) e sua determinação em ser honrado viria à mente? Só é possível concluir que a trilogia, na realidade, nunca se dissipou da cabeça do leitor em questão.
Também é característica dos livros que marcam o leitor o fato de seus personagens parecerem encarnar familiares, amigos e conhecidos. No caso, é possível olhar para um casal que sofre excessivamente de amor e pensar “isso não deu muito certo com Romeu e Julieta” ou ver um casal em que ambos são geniosos brigando e refletir “em ‘A Megera Domada’, a situação era bem parecida, mas, felizmente, a gente não vive nessa época em que o machismo não só existe como não precisa de se desculpar mais”. Aliás, as peças de William Shakespeare são frequentemente bons exemplos de obras que marcam leitores.
Há ainda os livros que são companheiros constantes do pensamento e que vão oferecendo respostas à medida que a vivência do leitor elabora perguntas. “Touareg”, de Alberto Vázquez-Figueroa, é um desses. A cada experiência de vida é possível acrescentar um grão de areia à compreensão da obra, e o leitor mais interessado em desvendar os mistérios da vida não faz mal em incluir entre seus propósitos no mundo entender, algum dia, por qual motivo o fim do livro não poderia ser diferente.
Por fim, há obras como “O Processo”, de Franz Kafka. Eu comecei a ler o livros aos 14, indicação de um desconhecido, que sugeriu a leitura quando eu olhava as estantes do extinto sebo Páginas Antigas. Comecei a ler e amei o livro, sentimento esse que se perdeu antes de eu chegar ao fim da leitura. E, apesar de não ser de meu feitio, desisti da leitura. Meses depois, percebi o erro. Assim como Josef K. estava preso nas engrenagens do sistema legal de seu mundo, eu estava presa, ao lado dele, nas páginas da obra. Retornei ao livro a fim de libertar-me e cantei minha vitória ao chegar ao fim. Inocência minha, é claro. Tantos anos depois, percebo que ainda estou lá, presa – ao contrário de Josef, que conseguiu escapar. Assim ficarei, acompanhada de todos os outros livros que me marcaram ao longo da vida, até o dia que eu chegar ao mesmo fim do personagem. E vamos torcer para que isso demore muito tempo.
Texto originalmente publicado em 27.3.2017. A colunista está de férias.