Diz a tradição católica que boa parte das almas, antes de ir para o céu, passa pelo purgatório. Nós, brasileiros, sempre criativos, estamos fazendo em vida trajetória inversa, indo do purgatório direto para o inferno em que se transformou a vida neste país. Como já andei dizendo aqui, nossa desordem política e social tem raízes profundas, semelhantes às de muitas ex-colônias que, até meados do século XX, não conheciam fronteiras e que ainda lutam para constituir-se enquanto Estados-nações.
A diferença é que o Brasil não é um país jovem, como costumamos dizer para justificar nossas mazelas. Fizemos nossa independência ainda no primeiro quartel do século XIX, com fronteiras políticas definidas, unidade linguística, ausência de disputas tribais e um governo central relativamente forte. Tínhamos tudo para dar certo e, no entanto, continuamos marcando passo, com uma economia claudicante e altamente dependente da exportação de produtos primários, às voltas com níveis de violência insuportáveis, instituições político-jurídicas desacreditadas, enfim, uma sociedade à beira do colapso.
Apesar de havermos alcançado patamares mais elevados de desenvolvimento econômico, nossas mazelas políticas e sociais pouco se distinguem daquelas encontradas nas ex-colônias africanas, onde, além das extremas desigualdades sociais, grassam o mandonismo político, a corrupção generalizada, a insegurança e a desagregação social.
Nosso êxodo populacional não aparece em frágeis embarcações lotadas de famintos, ele é mais difuso e inclui não apenas jovens em busca de oportunidades de trabalho no Primeiro Mundo, mas, também, uma leva de gente com renda suficiente para se instalar em solo seguro, longe da violência urbana e das incertezas econômicas. Isso para não falar da fuga de capitais e, com eles, de capitalistas e profissionais especializados, numa verdadeira sangria de capital social.
Tais mazelas não desaparecem senão acima de certo patamar de desenvolvimento econômico, da formação de um mercado interno robusto, do pleno emprego ou da ampliação do mercado de trabalho formal e consequente redução das ocupações informais e do subemprego.
São essas as condições para a emergência de uma sociedade mais igualitária, cuja sólida interdependência das funções e, consequentemente, dos indivíduos que ocupam essas funções é a fonte da solidariedade moderna, civilizada. Em outras palavras, são essas as condições para a emergência da cidadania civil, que, uma vez consolidada, se incumbirá de forjar instituições jurídicas e políticas efetivamente democráticas.
Caso contrário, prevalece o chamado “capitalismo selvagem”, predador, que depende e alimenta elites políticas corruptas, antidemocráticas e incapazes de fazer frente às crescentes demandas populares por segurança, saúde, educação, transporte e saneamento, incapazes de oferecer, por exemplo, as bases morais indispensáveis à instauração da confiança nas instituições e entre os próprios cidadãos.
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