Uma das pessoas mais fascinantes que conheci foi minha tia-avó Lúcia Machado de Almeida. Escritora renomada, jornalista, tradutora de francês, com formação em história da arte, literatura, canto e piano, era uma mulher muito além de sua época. De uma delicadeza impressionante, era tida como a grande anfitriã cultural de Belo Horizonte.
Sua vida movimentada levou-a para muitas viagens interessantes. E às vezes seu jeito distraído colocou-a em situações delicadas, como a que ocorreu em uma visita a um importante zoológico de Nova York.
Acompanhada do marido, o museólogo Antônio Joaquim de Almeida, de alguns diplomatas e do diretor do local, após exaustiva caminhada, ela manifestou o desejo de descansar um pouco. O diretor, que chamaremos aqui de Mr. Brown, convidou-os a tomar um café em seu escritório.
Minha tia, míope, sem os óculos, que esquecera no hotel, começou a observar o ambiente. Ao seu lado, uma prateleira repleta de livros e, no lado oposto, a escrivaninha do diretor, um vaso de flores e um colossal retrato de mulher emoldurado e de corpo inteiro. Não distinguiu bem a fisionomia, apenas percebeu que tinha os cabelos frisados e soltos e que estava vestida com um volumoso casaco de pele. Perdendo a chance de ficar calada, apontou o retrato e perguntou ao Mr. Brown:
– É a sua esposa?
– Não, minha senhora.
Respondeu o outro com certo constrangimento e um quê de indignação.
– Essa é a Uganda, uma gorila que morreu aqui, no ano passado.
Depois dessa, minha tia quase morreu também e, para piorar ainda mais o que parecia impossível, se saiu com esta:
– Até que a macaca é bem jeitosa...
Certa manhã, em sua casa, recebeu um telefonema. Um oficial do serviço do palácio avisava que o ex-rei Leopoldo da Bélgica, de partida para Ouro Preto, desejava antes lhe fazer uma rápida visita. Queria agradecer a recepção que tivera na véspera e aproveitar para tirar algumas fotos do terraço do Edifício Niemeyer, na praça da Liberdade, onde ela residia.
Pânico total! A casa estava meio caótica e, segundo minha tia, ela também, cheia de bobs na cabeça e um lenço segurando tudo.
Em menos de dez minutos, “Sua Alteza” e comitiva deveriam chegar. Num átimo, pôs todos em polvorosa, a começar pela cozinheira novata, Maria, recém-chegada da roça, que, ao ouvir falar do rei, entrou em parafuso.
– Um rei! Um rei!
Exclamava ela, sentada na cadeira, enquanto minha tia seguia retirando os bobs e as bagunças espalhadas pelo caminho. O tio, ainda de roupão, se encarregou de sumir com o Tel, o cachorro tarado, que ficava na parte externa da cobertura, um terrier gigante de pelo encaracolado, que não podia ver uma perna que se enroscava nela.
A campainha de serviço tocou. Era a Sua Majestade, acompanhado de toda a comitiva, entrando pela porta dos fundos. Errara de elevador. Maria, nervosa, começou a gritar da porta:
– Dona Lúcia! Dona Lúcia! O sô Rei tá na cozinha!!!
Estresse geral! Xícaras sujas jogadas na pia, pratos que se entulhavam e, o pior de tudo, um panelão enorme de angu com bofe cozinhando no fogão. Era a comida do cachorro – o tarado –, feita uma vez por semana. O negócio tinha um cheiro medonho e se espalhava pelo corredor.
Discreto e amável, o ex-rei disse que não tinha cerimônias e foi entrando na casa. O cachorro, enclausurado no banheiro, latia estressado, enquanto o distinto senhor tirava fotografias.
Após as fotos, perguntou à minha tia onde havia um toalete, e ela, esquecendo-se do cachorro preso, indicou-lhe o banheiro mais próximo. Foi a conta de ele entrar para sair rapidinho com um terrier agarrado às suas pernas.
Meu tio, constrangido, pediu encarecidas desculpas, conduzindo-o a outro banheiro, limpo e perfumado.
A visita foi rápida e cordial. Minha tia, se refazendo do susto, perguntou a Maria:
– E aí? O que você achou do rei?
E ela, com cara de decepcionada, disse:
– Uma porcaria! Nem coroa tem!
Crônica publicada no livro “Só de Bicho”, de Laura Medioli e Fernando Fabbrini, à venda nas Livrarias Leitura, Drogarias Araujo, Pet Animale, entre outros.
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