Ana foi embora há dois meses porque quis. Não topou conversar, não gritou ou chorou. Foi – levando o secador de cabelos, escova de dentes, incensos, todas as roupas e duas malas grandes. Fora uma ou outra peculiaridade esquecida pelas gavetas e pelos cantos da casa, ela deixou para trás apenas a sensação de que o fim é triste. Mesmo o alívio do fim, em amores gastos como o nosso, ainda é triste. “Não tente não chorar. É bom colocar para fora tudo o que faz mal”, foi a réplica dela antes de ir.
Repouso as pernas na cadeira de balanço, acendo um cigarro e vejo a palha queimar vagarosamente com um cuidado entediante, enquanto Charlie persegue uma barata, afoito, pelo tapete da sala, lutando para aleijá-la com suas patas desengonçadas.
Charlie é um bom cachorro, principalmente porque não faz perguntas, não me obriga a conversar nem a contar o que está havendo; e mantém as orelhas em riste e o sorriso aberto com a língua para fora em quase todas as situações, exceto em tempestades e foguetórios. Talvez por isso o elegi como melhor companhia desde que deixei de dividir a casa com Ana.
Porque não é preciso dizer nada dentro deste apartamento de 40 m² igual a tantas outras latas de sardinha por aí nos corações das metrópoles, onde resolvemos plantar hortaliças e pendurar uma rede colorida em frente à TV – uma forma simplista e até meio hippie de amenizar a tentativa cega e malfeita da cidade de evoluir, esmagando seus moradores uns em cima dos outros. Um peso tradicional demais para Ana suportar.
Abro as cortinas e vejo Ana no defeito do semáforo que pisca continuamente uma solitária luz amarela no meio da rua: instaurando um caos silencioso contigo, como se gritasse por ajuda no modo “mute”, enquanto a ansiedade dos carros tira lascas de impaciência uns dos outros, em busca de espaço e direito de ir e vir. Ana é a fuga dessa expressão visceral da cidade grande sufocada em seus próprios bugs automatizados, tentando achar saídas e atalhos por aí sem muito sucesso.
Sabe aquelas pessoas que querem o agora, o tempo inteiro, rejeitando os testes ludibriosos de laboratório e exigindo viver a práxis de ver e degustar por si mesmas, custe o que custar? Então. “É da minha natureza o abandono. É da minha raiz ser fronteira num mundo onde não podemos ter quintais”, ela escreveu na orelha de um livro que ficou para trás, junto com os discos do Bee Gees trazidos à força pelo pai para “dar som à casa nova”. Nunca suportei Bee Gees, e ficar com aqueles LPs me soa como uma sacanagem planejada, uma piada engraçada até mesmo para a solidão.
Um pouco por isso, sorrio de verdade pela primeira vez desde dois meses atrás. Pelos Bee Gees e por entender que eu não preciso saber se Ana partiu rumo ao Pará ou a Jerusalém: é que não importa o que importa quando tomo consciência de que só encontro Ana por inteira aqui, dentro de mim, e não no direito às revelações da vida que ela quer saber.
Não se engane. Não estou feliz nem triste. Eu simplesmente não estou neste momento. Entrei naquele patético e lento período de ver as coisas com outros olhos, adquirir manias de limpeza para me ocupar e me acostumar novamente com a incerteza que nos espera em todo recomeço.
Repita e assuma: Ana é ficção, pronto. Essa é apenas uma entre milhares de justificativas para esgotar as possibilidades que te permitem amar a mesma pessoa por todos os lados, ao descobrir, pouco a pouco, que não é mais possível entrar por nenhum deles. Só depois dá para entender que quem manda é o coração, sempre, mas quem dá os passos e escolhe a direção das nossas necessidades são as nossas próprias pernas.
* Este texto foi escrito em 2012 para Ana, uma personagem fictícia de recomeços, criada fora da realidade ou dentro da fantasia que não comporta a acomodação.