O jurista Rodrigo da Cunha Pereira atua há mais de 30 anos em sua “Clínica do Direito”, com sede em BH. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, principal instituição do setor na América Latina, ele já escreveu mais de 30 livros. Sobre o mais recente, “Dicionário de Direito de Família e Sucessões – ilustrado”, lançado dia 26, falamos a seguir.
Rodrigo, que novo olhar esse “Dicionário de Direito...” traz sobre o Direito de Família?
Além da arte plástica, a linguagem literária e a artística complementam os verbetes jurídicos, trazendo uma melhor compreensão e suavizando a dureza do conceito jurídico. Também há vários verbetes de psicanálise que têm conexão direta com o Direito.
De que modo significantes e significados expressam a família em seus sentimentos e direitos?
Mais que significados, as palavras trazem consigo significantes, como disse o linguista Saussure e depois Lacan. Incluí o verbete “significante” para ajudar o mundo jurídico a entender o peso que as palavras carregam para além de seu significado. Por exemplo, criamos a palavra homoafetividade para usar no lugar de homossexualidade, que traz consigo uma carga de preconceito muito grande. E assim, na medida em que as palavras vão sendo modificadas, elas podem ir suavizando o preconceito.
Essa leitura caberia numa abordagem lacaniana (o inconsciente estruturado como linguagem)? Como o Direito, a psicanálise e a arte se entrelaçam?
Sim. Direito, arte e psicanálise falam de uma mesma humanidade. Platão já dizia que o bem, o belo e o justo devem caminhar juntos na busca da harmonia. E assim, romper as barreiras entre arte e Direito é um dos desafios desse dicionário. Os vários verbetes psicanalíticos que ali estão foram buscados na psicanálise lacaniana: inconsciente, libido, sexualidade, gozo etc., todos diretamente ligados ao Direito. O próprio conceito de família, que é um dos grandes desafios atuais do Direito, pode ser buscado na psicanálise de Lacan; a família é uma estruturação psíquica.
Você cita “Sua mãe e eu / Seu irmão e eu / E a mãe do seu irmão / Minha mãe e eu”, música de Caetano Veloso, como expressão da família contemporânea. O que é essa “família mosaico”?
A linguagem poética é um grande instrumento para ajudar conceitos ou “cenas” jurídicas. Essa música, assim como a linguagem literária, ajuda a ampliar a noção de família e dizê-la muito melhor do que o próprio texto jurídico. As famílias hoje estão tão diferentes de antigamente que resolvemos dar nome a estas novas representações sociais. Os meus, os seus e os nossos filhos, em uma nova relação conjugal, formam um verdadeiro mosaico familiar. Daí o nome família mosaico.
Também faz referência a “Qualquer maneira de amor vale a pena / Qualquer maneira de amor vale amar”, versos de Caetano para a melodia de Milton Nascimento, para nos ajudar a compreender como o afeto transformou as categorias do Direito de Família contemporâneo. Ainda há um traço comum na família brasileira?
O amor sempre vale a pena, seja ele como for. E hoje o que sustenta o laço conjugal não é mais a formalidade jurídica. Na base de tudo está o afeto, que se tornou um valor jurídico e norteia todo o Direito de Família. Na família contemporânea há espaço para todos, dos mais tradicionais aos mais diferentes. Atualmente, é possível até mesmo ter dois pais e uma mãe ou duas mães e um pai na certidão de nascimento. É o que temos denominado de multiparentalidade, um dos importantes verbetes desse dicionário.
Como você traduz o Biodireito e pontua suas aplicações?
O Biodireito é o ramo do Direito que relaciona os avanços da medicina, engenharia genética, a biotecnologia e sua necessidade de estabelecer parâmetros éticos. Já chegou a hora de pensarmos melhor sobre a questão da barriga de aluguel, contratos de geração de filhos etc., que são realidades que batem à nossa porta e para as quais o Direito ainda não tem respostas satisfatórias.
Sobre sucessões familiares, algo novo em prática?
O Direito das Sucessões ainda é cercado de tabus. Por exemplo, apenas 5% dos inventários são feitos com testamento. No Brasil, as pessoas ainda têm uma grande dificuldade de fazer testamento, pois o relaciona à ideia de morte, como se fosse atraí-la. Porém, fazer um planejamento sucessório, e aí se inclui um testamento, evitaria muitas brigas e os longos e desgastantes processos de inventários. Em teoria, o Direito das Sucessões não mudou quase nada e exatamente por isso precisamos ser criativos para resolver os problemas de herança.
Qual a terapia aplicada em sua “Clínica do Direito”?
Chamo de “Clínica do Direito” porque nós advogados que trabalhamos com Direito de Família e Sucessões devemos ter um olhar atento e considerar toda a subjetividade que permeia os atos e fatos jurídicos. Como os sacerdotes e psicólogos/psicanalistas, somos profissionais da escuta e desenvolvemos um trabalho de ajuda, embora seja profissional. É ainda um trabalho de acolhimento do outro, que nos chega, em geral, tão fragilizado e desamparado. Compreender o desamparo é uma das chaves para ser um bom advogado de Direito de Família. Não é exatamente uma terapia, mas o processo pode ser terapêutico na medida em que ele vai ajudando o sujeito a elaborar suas perdas e mazelas.