“Veja como está a calçada: cheia de gente. Quando eu nasci não havia uma alma na rua. As pessoas estavam fechadas em suas casas, cagadas de medo. Por sorte, pra você, meu filho, faz muito tempo que perdemos o medo em Espanha”.
O texto acima encerra, de maneira comovente, o filme “Carne Trêmula” (1997), de Pedro Almodóvar. Trata-se das boas-vindas do protagonista Víctor (Liberto Rabal) ao seu filho, que acaba de chegar ao mundo e é um belo resumo do que ocorreu na Espanha no período em que se passa o filme – de 1970, quando o país ainda vivia sob a ditadura franquista, à metade dos anos 90, já na democracia.
É uma forma linda e sutil de Almodóvar tratar de um assunto tão dolorido e nunca antes mencionado em nenhum outro filme do cineasta espanhol: o franquismo.
A contraposição da primeira cena, que revela uma cidade de ruas vazias, silenciosas e frias, à última, com grande concentração de gente, barulho de automóveis, risadas e conversas, é um tributo à liberdade. A morte e a vida. O medo e a alegria.
Não se pode ter a dimensão do que é viver com medo sem vivê-lo, diz Victor ao seu filho/diz Almodóvar a todos nós. Sem grandes discursos, sem deixar de contar sua história que mistura amor, sexo, vingança, morte e mistério, o diretor espanhol dá seu recado.
Sempre me lembro das palavras que encerram esse filme e da importância de se viver em liberdade, em um sentido muito amplo. “Hace mucho tiempo que en España hemos perdido el miedo...” Quanto significado tem essa frase!
E vinda de Almodóvar ganha ainda mais significado. O cineasta espanhol parece nunca ter tido medo ou não teria se transformado em quem se transformou.
“Almodóvar ilumina uma Madri sombreada pela censura ditatorial franquista”, disse alguém. Sua estética kitsch, seus protagonistas marginais, sua falta de pudor, seu deboche e sua capacidade de quebrar tabus foram suas armas contra uma sociedade encaretada por 30 anos de Francisco Franco no poder.
Pedro Almodóvar foi resistência. Natural, portanto, que a liberdade lhe seja tão cara. Viva Almodóvar!
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